INTRODUÇÃO
O objetivo desta presente comunicação é de investigar a relação
existente entre a iconografia cristã e a doutrina do Santo Daime, culto cristão
surgido na Amazônia Ocidental, criado pelo maranhense Raimundo Irineu Serra e
que tem como peculiaridade a ingestão, nos seus ritos, da bebida de origem
indígena ayahuasca, rebatizada de daime.
Considera-se que o cristianismo católico transplantado para o
mundo ibero-americano aqui encontrou distintas configurações civilizatórias,
culturais, religiosas, lingüísticas e étnicas, combinando heranças hispânicas e
portuguesa com aborígines e africanas. Nesse encontro de culturas ocorre a
troca, simbiose, influência recíproca, ao mesmo tempo que as civilizações se
recriam, desenvolvem e mudam.
Relativo ao Santo Daime, observamos que este sistema de crenças
constitui um corpo doutrinário único, consistente, completo, universal, e não a
soma de diversos elementos, como em outras linhas espirituais sincretistas, não
originais. Surpreende a riqueza cosmológica da doutrina daimista.
Podemos assinalar também que o Santo Daime, nascido no seio da
floresta amazônica, é uma expressão de religiosidade cristã com características
de “culto periférico” que se expande levando consigo a marca do “diferente”, do
“estrangeiro”, do “dominado”, do "aculturado".
Sobre o tema proposto, investigar a relação existente entre o
Santo Daime e a iconografia cristã, neste estudo argumentaremos que não existe
analogia estreita entre a matriz católica e a doutrina daimista, e sim
peculiares distinções.
E esta santa doutrina replantada por Nosso Senhor Jesus Cristo e
trazida ao Brasil por ordem da Virgem Mãe Divina ao mestre Raimundo Irineu
Serra Juramidam – com o seu panteão hierárquico constituído pelos “seres
divinos da Corte Celestial” – pode ser considerada o cristianismo da floresta,
a doutrina e a luz da floresta.
A ICONOGRAFIA CRISTÃ
Iconografia é a arte de representar por meio das imagens. Nas
igrejas católicas encontra-se uma vasta e muitas vezes riquíssima iconografia
religiosa de alto valor artístico e cultural, na forma de esculturas, pinturas
e outras formas de representações do sagrado.
Entretanto, a iconografia cristã só vai aparecer na primeira
metade do século III, pois nos dois primeiros séculos da nossa era as
comunidades cristãs que surgiam eram muitas vezes pequenas e quase sempre
clandestinas e de condição humilde, constituindo assim o meio social menos
propício para o florescer de atividades artísticas. E mesmo que no seio do
cristianismo existissem famílias nobres e ricas, relacionadas com os ambientes
artísticos e a tradição cultural greco-romana, tampouco ali se desenvolveram
manifestações artísticas cristãs nesse primeiro período,[1] chamado de
cristianismo primitivo.
Considera-se que o principal motivo da não existência de
iconografia cristã no cristianismo primitivo tem caráter ideológico: os
primeiros cristãos, de origem judia, formam comunidades com uma forte tradição
iconoclasta, por prescrição bíblica.
“Não fareis para vós ídolos, nem vos levantareis imagem de escultura,
nem estátua, nem poreis pedra figurada na vossa terra, para inclinar-vos a ela”
[2]
Clemente de Alexandria (150-216), mesmo sendo um pensador
simpático à cultura greco-romana, ressalta o caráter obsceno e sensual das
artes plásticas. E quando se dirige aos artistas destaca sua incapacidade para
aproximar-se ao mundo do espírito.
Tertuliano (155-220) chega a afirmar que foram os demônios que
criaram as artes – aí incluindo a música. Conta Tertuliano que em tempos mais
remotos não havia estátuas, e foi o diabo quem incitou os homens a criar
estátuas. E os artistas, influenciados por seus diabólicos mestres,
subordinaram a arte a seus próprios fins: a rebeldia.[3]
Apesar de toda essa forte reação, aparece quase que repentinamente
(séc. III) uma arte cristã por todo o Império romano, e os historiadores
procuram entender os motivos, obviamente de raízes culturais. Talvez a chave se
encontre na conversão dos gentios iniciada pelo apóstolo Paulo. Inicia-se
então, ainda no século I o afastamento dos cristãos do judaísmo e o aumento da
influência da cultura pagã. O antigo pagão que tinha adorado e conhecido a seus
deuses através da manifestação artística passa a desejar ver em imagens as
figuras de Cristo e dos santos, assim como as cenas mais significativas dos
livros sagrados.
Surge então uma iconografia cristã. Veneram-se as imagens de
Cristo, da Virgem e dos santos: o culto das imagens foi expressão típica da
religiosidade bizantina (Império Romano do Oriente) e obteve ampla difusão nos
séculos VI e VII.
.
.
Porém, a reação iconoclasta contra o culto das imagens surge logo
depois, nos séculos VIII e IX, compreendida como um conflito político entre os
imperadores e o clero.
A iconoclastia nasceu no império bizantino ameaçado pelo
islamismo. Aos olhos dos governantes, deveria servir para acabar com práticas
religiosas que se confundiam com a idolatria, e para evitar a intervenção
armada dos muçulmanos. Os bizantinos, a exemplo dos gregos clássicos, preferiam
as figuras humanas. As lutas cristológicas e a interpretação do Corão buscavam
uma espiritualidade pura e a escolha dos velhos temas artísticos que ignoravam
a representação de seres vivos.
“A aversão às imagens santas vinha dos fiéis que viam, no perigo
exterior (árabes) e no interior, o castigo do Senhor, provocado pelos ímpios
adoradores de imagens. Alegavam ser imprudente provocar os muçulmanos, que
rejeitavam as imagens porque eram mudas e não respiravam. A partir de 724, o
imperador Leão III começou sua campanha contra as imagens e ordenou sua
destruição. Os bispos ortodoxos reagiram a favor delas e o papa Gregório II
(715-731) condenou a iconoclastia de Leão III. Mas o imperador prosseguiu sua
luta contra as imagens e contra seus fabricantes. No Concílio Romano de 731, o
Papa Gregório III condenou os profanadores de imagens e confirmou seu
culto”.[4]
A perseguição iconoclasta foi violenta, e houve numerosos
mártires. Em 843, houve o restabelecimento definitivo do culto às imagens no
Oriente. Assim Bizâncio retomou seu espírito. A arte sacra recebeu um impulso
excepcional, assegurando-lhe, durante séculos, lugar de primeira grandeza.
A Reforma luterana também foi contra as imagens religiosas, até
pelo fato da arte italiana da época estar muito relacionada aos hábitos
ostentadores do Vaticano. Os protestantes não aceitaram o que consideravam
idolatria de imagens e, por isso, retiraram de suas igrejas desde obras de arte
até adornos. A reação da igreja romana foi implacável, com a Contra-Reforma, a
instauração do Tribunal da Inquisição e gerou-se um interesse entre os
católicos de se contrapor a qualquer ação dos reformistas e a arte religiosa
passou a ser exaltada como uma arma poderosa contra as ditas doutrinas
heterodoxas. [5]
Como resultado da cisão cristã com o advento do protestantismo
luterano-calvinista, quanto à questão da representação iconográfica de Jesus,
Maria e dos santos percebe-se hoje em dia duas concepções e práticas.
Primeiro, o catolicismo não considera idolatria a veneração de
esculturas ou a pintura das imagens dos santos, porque à sua vista o fiel pode
meditar os seus exemplos e imitar as suas virtudes, recordar e honrar nosso
Senhor Jesus Cristo[6] ou o santo de ocasião.
Segundo, os protestantes - que protestam - e construíram o seu
corpo doutrinário na negação do catolicismo, entre outras coisas, reafirmam o
axioma bíblico já exposto: "Não farás para ti escultura alguma do que está
em cima nos céus, ou abaixo sobre a terra, ou nas águas, debaixo da
terra".[7] Argumentam que os católicos praticam a idolatria, fazendo e
adorando imagens, o que Deus proíbe na Bíblia.
Pergunta: e na doutrina do Santo Daime? Existe uma iconografia daimista?
Adiantamos a resposta e afirmamos que não. Não existe uma
iconografia daimista, pelo menos na doutrina original criada pelo Mestre Irineu
Serra e praticada nos quatro centros (igrejas) localizados no Alto Santo,
bairro semi-rural de Rio Branco, capital do Acre, onde originou-se a doutrina.
OS SÍMBOLOS DO SANTO DAIME
Na doutrina do Santo Daime existem três principais símbolos, ou
referências simbólicas, que não se constituem em iconografia. Discorreremos
brevemente sobre cada um deles.
Um símbolo central do Santo Daime é o Santo Cruzeiro,
fincado em tamanho gigante, à esquerda de quem adentra o templo e orna também a
mesa de centro do salão de serviços. Um traço doutrinário distintivo é que esta
é a Cruz de dois braços, ou Cruz de Caravaca.
.
A Cruz de Caravaca surgiu na história da cristandade pela
primeira vez em 1232, na cidade espanhola de Caravaca, em Múrcia. No Brasil, a
Cruz de Caravaca chegou há muito tempo, trazida pelos primeiros colonizadores,
na esquadra de Martin Afonso de Souza.
Tida como um poderoso amuleto, passou a ser adotada pelos
cruzados, templários e missionários como símbolo de proteção. Popularmente os
dois braços significam fé redobrada. É comum ouvir os daimistas dizerem que o
segundo braço significa o retorno do Nosso Senhor Jesus Cristo.
São muitas as interpretações: para os esotéricos, por exemplo, o
lenho vertical significa a cruz do espírito; e o lenho horizontal simboliza o plano
material, tendo como resultado o Homem, que é um ser que se move no plano
material com opção para ascender ou descender espiritualmente. A cruz lhe
recordará a sua posição na escala evolutiva, e fará com que se centre no
cruzamento do espírito com a matéria.
Ao lado da Cruz de Caravaca, a doutrina do Santo Daime também
adotou o Santo Rosário católico. A palavra Rosário origina-se de rosa,
flor da roseira. O Rosário é uma enfiada de 165 contas, correspondentes ao
número de quinze dezenas de ave-marias e quinze pais-nossos para serem rezados
como prática religiosa, entremeado da contemplação dos mistérios da vida,
paixão, morte e ressurreição de Cristo, sempre relacionando essa caminhada com
a Virgem Santíssima.
A devoção do Rosário teve o seu reflorescimento com as aparições
de Nossa Senhora em Lourdes, na França (1.858) e Fátima, Portugal (1.917). Os
rituais daimistas de Hinário (bailado) iniciam-se com a reza do Terço –
a terça parte do Rosário – e logo após o rosário é depositado pela “puxante” no
Cruzeiro da mesa de centro, o abraçando.
A oração do Santo Rosário é considerada uma benéfica prática,
impregnada de humildade, renascimento, caridade, pureza, penitência, perdão,
perseverança, devoção e fé na salvação eterna.
Outro importante símbolo doutrinário é a representação da lua
crescente com uma águia pousada no centro. Este símbolo está presente na
bandeira do Santo Daime; pode compor a insígnia portada no peito direito do
adepto – no centro da estrela de Salomão – e como elemento simbólico e
decorativo do salão da sede de serviços.
Esta é a representação simbólica do mito fundante da doutrina,
quando numa noite de lua cheia uma Senhora apareceu para o jovem Irineu Serra
dentro da lua. “E viu-se um grande sinal no céu: uma mulher vestida do sol,
tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua
cabeça”. [8]
Consagrada como Mãe, Rainha, Lua Branca - identificada com a
Virgem Mãe Católica, Nossa Senhora da Conceição, a Senhora passa a lhe entregar
a doutrina do Santo Daime através dos hinos, que são as revelações dos
mistérios divinos.
.
.
A Estrela de Salomão ou o “Selo de Salomão” é uma outra
referência muito significativa para “os soldados do exército de Juramidam”,
pois este é o símbolo que ostentam no peito. Também conhecido por escudo ou
estrela de David, é uma estrela de seis pontas, formada por dois triângulos
equiláteros, um perfeitamente invertido em relação ao outro, que contém, entre
vários atributos, os quatro elementos alquímicos: o fogo no vértice superior, a
água no vértice inferior, o ar na reentrância à esquerda, entre os dois
triângulos e, por fim, a terra na correspondente reentrância à direita.
O hexagrama que é o Selo de Salomão reúne, na sua totalidade, além
do conjunto dos elementos do universo, as qualidades fundamentais da matéria.
Estas situam-se nas pontas laterais da estrela e correspondem-se, duas a duas,
com os elementos: quente e seco para o fogo; frio e úmido para a água; quente e
úmido para o ar; e frio e seco para a terra. Assim, na tradição hermética, o
Selo de Salomão pretende exprimir, na sua aparente simplicidade, a complexidade
cósmica.
O hexagrama também pode reunir os sete metais básicos: o chumbo, o
estanho, o ferro, a prata, o cobre e o mercúrio - nas pontas da estrela e
rodando segundo os ponteiros do relógio - e, ao centro, o ouro. O domínio
alquímico desses elementos, na ciência esotérica, permite ao iniciado mover
conscientemente o seu corpo astral e viajar com ele do plano físico a planos
astrais superiores. O vôo astral que o Daime possibilita.
Além desses signos aqui postos, admite-se no salão de serviços
daimista fotos do fundador da doutrina (Mestre Irineu) e de adeptos
proeminentes, alguns já falecidos, que contribuíram para a formação da
irmandade (fotos de seo Leôncio Gomes, Tetéo, Madrinha Peregrina Gomes Serra,
Francisco Grangeiro Filho e outros).
“NO SANTO DAIME TUDO SE SOMA”
OU ECLETISMO E SANTO DAIME
Em 1974 o Padrinho Sebastião Mota de Melo lidera uma dissidência,
deixando o Alto Santo e funda a sua igreja na colônia em que residia, área
rural do município de Rio Branco, capital do Acre. Ali na Colônia 5.000 organiza-se
o CEFLURIS – Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra –
que, como o próprio nome indica, desenvolverá um amplo sistema de crenças de
caráter sincretista.
O sincretismo é a tentativa de conciliar crenças díspares e mesmo
opostas e de fundir práticas de várias escolas de pensamento. Está associado em
especial à tentativa de fundir e criar analogias entre várias tradições
originariamente discretas, particularmente na teologia e mitologia da religião,
afirmando assim uma unidade subjacente.
A liderança e o carisma do Padrinho Sebastião, assim como a
curiosidade despertada por uma religião amazônica que fazia uso da ayahuasca,
atrai para a Colônia 5.000 contingentes de jovens de classe média, de
comportamento social “alternativo” (hippies, mochileiros etc) provenientes em
sua maioria do Sudeste brasileiro, que vão se tornando novos adeptos urbanos do
Santo Daime.
A atração exercida pelo Santo Daime sobre aqueles que seriam seus
novos adeptos corresponde a um fenômeno surgido em diversas partes do mundo,
que logo chegou ao Brasil, nas grandes cidades, que é um movimento de
contestação social, ganhando adeptos entre indivíduos das camadas médias
urbanas, com alto grau de escolaridade.
Um dos nomes generalizantes que se dá a esse movimento é o de
contracultura. Entre as diversas tendências contraculturais existentes
destaca-se a “nova consciência religiosa”, formada por indivíduos
representativos de trajetórias identificadas com o programa ético-político
moderno, de tipo “libertário” e críticos da tradição, especialmente do “fardo
repressivo” das tradições religiosas. Estes sujeitos originários do modelo
individualista-laicizante, freqüentemente educados dentro de padrões
racionalistas e iluministas, mostram-se crescentemente atraídos pela fé
religiosa, pelos mistérios do êxtase místico, pela redescoberta da comunhão
comunitária e pelo desafio de saberes esotéricos.[9]
Paralelo ao apelo por revoluções sociais e sexuais, parte da
juventude do país escolheu por estudar e conhecer civilizações orientais e a
recuperação do exótico, do diferente, do original, seus mistérios
transcendentais e ocultistas. Nos idos de 1970, frente ao fracasso da
resistência armada à ditadura militar, adotam uma forma de transformação mais
individualista adotando idéias “hippies” e da “Nova Era” que começavam a chegar
ao Brasil
"Para MacRae[10] o holismo místico-ecológico substitui
crenças e práticas anteriores, e o repertório sobrenatural e espiritual dos
recém convertidos passa a ser povoado por lamas tibetanos, iogues, orixás,
chamas violetas, discos voadores, seres extraterrestres, cristais, pirâmides,
os ensinamentos de Don Juan relatados por Carlos Castañeda e outros exotismos.
Entre essas inúmeras vivências e experiências esotéricas esses
“buscadores” encontram uma religião popular do norte do Brasil, o Santo Daime,
que a partir da década de oitenta se expande para as principais cidades
brasileiras. Conforme Afonso: “Desde há cerca de vinte anos, o Santo Daime
tornou-se um dos cultos da proliferação de novas religiões no cenário urbano do
Sul do Brasil. Os aderentes são sobretudo pessoas das classes médias
escolarizadas e jovens em particular. E há várias re-leituras pessoais com
inspirações da espiritualidade New Age, misticismo oriental e ecológico,
em particular por parte de um público flower-power." [11]
Ao se converterem a um novo sistema de crença, esses novos adeptos
urbanos passam por mudanças em relação aos seus modos de vida e aos códigos intelectuais,
e a racionalidade é posta em suspeição como modelo de explicação do mundo.
Fundam-se novos códigos de ética e de conduta moral, reconstruindo o seu self.
Ao tempo em que se convertem a um novo sistema de crença, e passam
a ser influenciados por ele, também influenciam a nova linha doutrinária que
surgia – a linha do Padrinho Sebastião – reinterpretando e ressignificando a
cosmologia criada pelo Mestre Raimundo Irineu Serra, a ele entregue pela Virgem
Mãe na forma e conteúdo dos cinco hinários da base doutrinária.
A não institucionalização religiosa ou um processo em vias de
institucionalização, que ocorria no CEFLURIS na década de 1970, período de sua
fundação, vai levar a que a estruturação da organização carismático-burocrática
de porte internacional na qual se transformará nas décadas seguintes, constitua
também um sistema de crenças assaz eclético e sincretista, buscando fundir
tradições cristã, orientalista, xamanismo, umbanda e todo o cadinho de crenças
que se vai apresentando a partir de então.
A ressignificação que a doutrina do Santo Daime sofre, ferida no
seu cerne por esses novos adeptos, faz com que ela deixe de ser essencialmente
cristã - como é insistentemente repetido nos hinos dos hinários – e abrem-se as
portas para um “abuso” de ecletismo, que pode até ser considerado um desvio
doutrinário, e o Santo Daime passa a ser considerado uma doutrina sincrética,
descaracterizando-se, e aqueles que assim a interpretam perdem (infelizmente) a
compreensão da riqueza cosmológica da doutrina daimista que, como já foi dito,
constitui um corpo doutrinário único, consistente, completo, universal, e não a
soma de diversos elementos, como em outras linhas espirituais sincretistas, não
originais.
E essa ressignificação e reinterpretação que é feita da doutrina
do Santo Daime vai influenciar o imaginário de todos os novos adeptos urbanos,
incluindo aqueles que, críticos da linha do CEFLURIS, se autodenominam da
“linha do Mestre Irineu” ou da “linha do Alto Santo”.
DE VOLTA AO COMEÇO: A INEXISTÊNCIA DE ICONOGRAFIA NO SANTO DAIME
Recebendo todas essas influências, nos templos daimistas passam a
abundar representações iconográficas não só cristãs, mas também umbandistas e
de outras linhas e sistemas de crença.
Constatamos que, mesmo entre os “velhos adeptos”, a prática de
colecionar ícones católicos se institui, quando em suas casas passam a ter
representações da Virgem Maria e de outros ícones cristãos. Muitas vezes essa
prática é levada por seus filhos que ainda residem nos lares paternos.
Porém, é bom ressaltar que a Santa Doutrina entregue ao Mestre
Raimundo Irineu Serra por ordem da Virgem Mãe não tem representação
iconográfica. Por quê? O que lhe confere essa especificidade?
Vejamos: nos hinos dos hinários é repetido diversas vezes que a
missão do Mestre Irineu é de “replantar a Santa Doutrina do Salvador”. Vamos
entender o que é isso lembrando das palavras de Cristo Jesus: “não cuideis que
vim destruir a lei e os profetas (como era chamado o Antigo Testamento), não
vim extinguir, mas cumprir”.[12]
Ao dizer isso Jesus reafirma a tradição judaica, que a sua
doutrina é a continuidade da doutrina dos antigos profetas judeus, porém
incorporando um essencial novo elemento ético: “eis que eu vos dou um Novo
Mandamento: Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei”. [13]
Sebastião Jaccoud afirma: “a maravilha desta doutrina é que ela
tem seus fundamentos nos princípios. (...) Vai buscar os tempos primitivos, das
tribos de Israel, Judá, Jacó, passando por Noé, Moisés e tantos outros que
vieram em seus devidos tempos para disseminar os conhecimentos religiosos para
aqueles que seguiam com eles, os parentes, a tribo. (...) De acordo com o que
se lê nas narrações do passado, há toda uma linha que vai de Noé a Jesus Cristo
dentro do povo judeu”.[14]
Alex Polari, ideólogo daimista, um dos responsáveis pela
reinterpretação e ressignificação da doutrina pelo prisma New Age,
paradoxalmente reafirma essa tradição judaica na doutrina de Juramidam quando
escreve: “a tradição cristã apoiou-se numa tradição anterior do povo de Israel,
principalmente dos essênios, que esperavam o final dos tempos e o advento de um
Messias. Seu líder era denominado ‘O Mestre da Justiça’ e esperava-se a sua
reencarnação”.[15] Em outro livro, transcrevendo palavras do Padrinho Sebastião
Mota de Melo, ele continua:
“- É o que está escrito. Ta tudo acontecendo de novo. Basta ler os
Evangelhos e escutar os hinos. No Apocalipse já estamos. A gente só não sabe
qual trombeta que está tocando. São 144.000 os que vão se salvar, né? A Bíblia
não diz isso? A chave para nós é só essa. Renascer, compreender o que é a vida
e lá permanecer. Vir aqui só em missão. Ficar livre da necessidade de
encarnar.” [16] E Sebastião Mota continua a nos dar belas lições na rica verve
polariana, que não transcreverei aqui para não nos alongar, porém recomendo
entusiasticamente a leitura.
CONCLUSÃO
Bem, se os daimistas são – ou podem vir a ser - os “novos judeus”,
“povo eleito”, “escolhido”... como se depreende da percepção do Jaccoud ou do
Polari... não sei. Entretanto, que Mestre Raimundo Irineu Serra ao replantar a
Santa Doutrina dos tempos de Noé e do Nosso Senhor Jesus Cristo se reporta ao
judaísmo e ao cristianismo primitivo não resta dúvida.
Por isso, acreditamos que a não existência de uma iconografia
daimista está nos seus fundamentos e origens: judaísmo e cristianismo
primitivo. A incorporação da iconografia cristã e umbandista à doutrina do
Santo Daime veio a posteriori, trazido por novos adeptos urbanos que
influenciaram a formação eclética e sincretista da organização CEFLURIS e de
pequenos centros “independentes”, com o caldo de cultura da ideologia “Nova
Era” dos anos 1970-1980.
Um argumento católico da importância da iconografia é que as
imagens da Bíblia, da Via Sacra, de Jesus crucificado e dos santos são o único
"livro" que também os pobres e analfabetos entendem e aproveitam. É
certo que isso vale, ainda hoje, para milhões de pessoas.
Todavia, os daimistas têm consigo dois trunfos diferenciais: a
doutrina cantada e aprendida na forma de hinos; e o fenômeno da miração, o
transe místico induzido pela ingestão da bebida Daime, quando ocorrem experiências
extáticas e visionárias com o adepto, assim como revelações e intuições de
grande profundidade e emoção.
A “iconografia” daimista é subjetiva, se manifesta no invisível,
na miração. Se processa no olho espiritual, na mente e no coração. “A candeia
do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo o teu
corpo terá luz”.[17]
Esse é o caminho apontado pelo Mestre Raimundo Irineu Serra
Juramidam.
Notas:
(*) Juarez Duarte Bomfim é sociólogo e
Mestre em Administração pela UFBA; doutor em Geografia Humana pela Universidade
de Salamanca, Espanha, e professor-assistente do DCHF-UEFS, na Bahia. Na vida
espiritual é um "soldado da Rainha" ou "soldado do General
Juramidam", discípulo devotado aos ensinos do Mestre Raimundo Irineu Serra.
Contato: juarezbomfim@uol.com.br
[1] MONTEJO, Inés Ruiz. El nacimiento de la
iconografia cristiana. Disponível em
http://www.fuesp.com/revistas/pag/cai0701.html Acesso em 14 set 2007.
[2] Levítico 26:1; também em Êxodo 20:4-5; Deuteronômio 5:8.
[3] MONTEJO, Inés Ruiz., idem.
[4] Disponível em
http://www.luteranos.com.br/mensagem/artigo_arte_luterana7.html Acesso em 15
set 2007.
[5]Disponível em http://www.casthalia.com.br/a_mansao/ambientes/claustro.htm
Acesso em 15 set 2007.
[6] Disponível em.http://www.mensageirosdecristogv.hpg.ig.com.br/rb.html Acesso
em 15 set 2007.
[7] Êxodo 20:4.
[8] Apocalipse 11:19; 12:1.3-6.10.
[9] Ver MACRAE, Edward. Guiado pela lua. Xamanismo e uso ritual da ayahuasca no
Culto do Santo Daime. São Paulo:Brasiliense, 1992; ANDRADE, Afrânio Patrocínio
de. Contribuições e limites da União do Vegetal para a nova consciência
religiosa. O uso ritual da ayahuasca. LABATE, Beatriz Caiuby e ARAÚJO, Wladimyr
Sena (Orgs.) Campinas, SP: Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 2002;
MORTIMER, Lucio. Bença, Padrinho! São Paulo: Edição Céu de Maria, 2000. VIANA.
Túlio Cícero. O Consagrado Defensor. Belo Horizonte: Líttera Maciel Ltda, 1997.
[10] MACRAE 1992, p. 130-132
[11] AFONSO, Carlos Alberto. Paródia sacra, p. 12. Disponível em
http://www.neip.info Acesso em 05 nov 2007.
[12] Mateus, 5:17.
[13] João, 13:34.
[14] JACCOUD, Sebastião. O Terceiro Testamento in Livro dos hinários. Centro de
Iluminação Cristã Luz Universal. Alto Santo. Brasília: Gráfica do Senado, 1992,
p. 17-18.
[15] POLARI DE ALVERGA, Alex. O guia da floresta. Rio de Janeiro: Record/Nova
Era, 1992, p.233.
[16] POLARI DE ALVERGA, Alex. O livro das mirações. Uma viagem ao Santo Daime.
Rio de Janeiro: Record/Nova Era,1995, p. 288.
[17] Mateus, 6:22.
Referências Bibliográficas:
AFONSO, Carlos Alberto. Paródia sacra, p.
12. Disponível em http://www.neip.info Acesso em 05 nov 2007.
BÍBLIA SAGRADA
http://www.casthalia.com.br/a_mansao/ambientes/claustro.htm Acesso em 15 set
2007.
JACCOUD, Sebastião. O Terceiro Testamento in Livro dos hinários. Centro de
Iluminação Cristã Luz Universal. Alto Santo. Brasília: Gráfica do Senado, 1992.
http://www.luteranos.com.br/mensagem/artigo_arte_luterana7.html Acesso em 15
set 2007.
http://www.mensageirosdecristogv.hpg.ig.com.br/rb.html Acesso em 15 set 2007.
POLARI DE ALVERGA, Alex. O livro das mirações. Uma viagem ao Santo Daime. Rio
de Janeiro: Record/Nova Era,1995.
POLARI DE ALVERGA, Alex. O guia da floresta. Rio de Janeiro: Record/Nova Era,
1992.