Artigo de Juarez Duarte Bomfim



A Doutrina do Daime e o Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento

 

Mestre Raimundo Irineu Serra adotou o lema do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento que hoje adorna as portas de entrada de muitas casas e centros daimistas – e os unifica: Hei de Vencer. Significa a continuidade da tradição esotérica, já há mais de um século.

O Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento 

No ano de 2006, em visita à casa do sr. Daniel Serra, na Estrada Apolônio Sales (Rio Branco-Acre), o amigo Eduardo Bayer se deparou com uma relíquia, o exemplar d’o “Livro de Instruções” do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento (CECP), de Mestre Raimundo Irineu Serra, tio de Daniel.

O “Livro de Instruções” é a obra-mestra daquela Venerável Ordem. Um texto iniciático, só acessível aos filiados, e exclusivos destes. Obviamente pode ser herdado, após o falecimento do sócio do CECP, por seus familiares ou por designação testamental, e estes serão os guardiões de tal obra esotérica.

O Círculo Esotérico é antigo e foi a primeira ordem ocultista estabelecida no Brasil. Fundado em 1909 por Antônio Olívio Rodrigues (1880-1943), um migrante português, autodidata, se apresenta como uma entidade altruísta, sem fins lucrativos. Pessoas de todas as religiões, filosofias, credos, sexos, raças, classes sociais e nacionalidades podem nela se filiar.

O CECP difundiu ideias de várias correntes esotéricas que se desenvolveram nos Estados Unidos e na Europa no século XIX. Esta organização caracteriza-se por uma doutrina sem dogmas rígidos, aberta ás várias crenças atentas aos laços de fraternidade universal e à evolução humana.

Um dos seus patronos e mestre é Swami Vivekananda (1863-1902), guru indiano, pioneiro em trazer para o Ocidente o conhecimento milenar da religiosidade hindu e os fundamentos do yoga.

O ideal cultivado é de “comunhão do pensamento”, isto é, uma corrente mental coletiva, visando à geração de ondas irradiadoras de pensamentos de Harmonia, Amor, Verdade e Justiça — lemas da Ordem.

O CECP é uma organização humanista e mentalista. Em horas do dia pré-estabelecidas, deve-se vibrar em comunhão. Atualmente, um dos principais ritos da organização é a entonação coletiva da Oração “Chave de Harmonia”, sempre às 18h, em todos os Tattwas estabelecidos pelo Brasil.

O filiado esoterista deve também recitar a “Consagração do Aposento” e a oração de agradecimento, individualmente, todos os dias.

O CECP se expandiu vertiginosamente. Já em 1910 são criados os Tattwas – Centros de irradiação mental, células do Círculo – em diferentes localidades. Durante toda esta primeira década do Século XX e nas décadas seguintes ocorre o crescimento acelerado do CECP, com a participação de influentes personalidades da vida política, social e econômica, notadamente em São Paulo.

Baseado num projeto editorial vigoroso, da Editora Pensamento, o CECP tem forte relação com os livros e a leitura. Isso atrai a elite e a classe média urbana, culta, das cidades brasileiras. Dissemina a ideia de que o individuo deve estudar, pesquisar, ler. Ninguém se transforma num esoterista só frequentando as sessões dos tattwas: é preciso ler, ter toda uma formação letrada, o que representa o perfil do bom e aplicado esoterista. Daí que o filiado necessita ser alfabetizado, ter acesso a um bem que, no Brasil, é de poucos — o livro — e precisa ter gosto pela leitura. Este é o perfil de indivíduos das classes médias urbanas.

Porém, surpreende… e muito! se saber da quantidade de filiações ao Círculo Esotérico nos rincões profundos do Brasil, tanto no interior do Nordeste brasileiro como na longínqua tríplice fronteira com a Bolívia e o Peru, no então município de Brazylia, hoje Brasiléia, no Acre, nos anos 1910.

Nesta região de vastos seringais, onde o jovem Raimundo Irineu Serra bebeu ayahuasca pela primeira vez (1914), organizou-se um Tattwa, o Círculo de Regeneração e Fé (CRF), e os participantes não lembravam em nada o perfil do esoterista urbano classe média, descrito acima, pois esta organização possivelmente comportava entre seus participantes uma maioria negra, a começar do presidente, Antônio Raimundo Costa, sendo de profissão seringueiros, caçadores, agricultores, trabalhadores braçais humildes e semialfabetizados.

O Círculo de Regeneração e Fé 

O Círculo de Regeneração e Fé (CRF) foi fundado em 1916, com o lema de “Harmonia, Amor e Verdade”. O grau de formalismo e institucionalização deste centro espiritualista no coração da floresta amazônica deveria ser tênue, diminuto. Provavelmente o próprio CECP estivesse ainda em fase de institucionalização. Todavia, pode-se considerar, sem dúvidas, o CRF como um Tattwa, isto é, uma célula do Círculo Esotérico.

Moreira e MacRae (2011) fazem uma detalhada descrição das atividades do CRF e utilizaremos destas informações, a seguir. Esses autores discorrem sobre a composição dos seus membros, que contava com o presidente, Antônio Raimundo Costa, seu irmão, André Avelino Costa e o jovem Raimundo Irineu Serra, entre outros maranhenses, nas suas fileiras. Cabe destacar que das levas de nordestinos tangidos pela seca e atraídos por promessas de um eldorado do látex, os maiores contingentes migraram do Ceará e Maranhão.

Nas reuniões do CRF se bebia ayahuasca. Dava-se início neste período — primeira década do Século XX — um hábito da população migrante (não indígena) e cabocla, envolvida na atividade da economia do látex, que iria se caracterizar como típica das comunidades rurais do Acre e regiões fronteiriças da Bolívia e Peru: “beber cipó”, isto é,  grupos de homens (e raras mulheres) que se reuniam à noite, após a lida, para comungar daquela bebida originária da Amazônia Ocidental.

As sessões do CRF eram caracterizadas por fenômenos mediúnicos de comunicação espiritual, e nas suas sessões estabeleciam-se comunicações com entidades que se identificavam com títulos de reis, rainhas, príncipes, princesas e marechais. Essas comunicações eram psicografadas e consistiam em mensagens de cunho moral, instruções, aconselhamentos e, inclusive, mensagens proféticas, premonitórias.

Geralmente as comunicações eram recebidas pelo presidente Antônio Costa. Para invocar esses seres faziam-se “chamados”, as invocações dos seres do mundo invisível. Os chamados são similares aos ícaros da tradição ayahuasqueira peruana.

Baseado em documentos da época, de posse de familiares dos irmãos Antônio e André Costa, Moreira e MacRae (2011) afirmam que havia um momento no ritual do CRF para se consultar as entidades presentes, obter conselhos sobre situações difíceis ou questões de saúde. Nestas consultas eram sugeridas soluções para as variadas questões dos consulentes, como também eram passadas receitas de remédios da floresta e medicamentos industrializados.

Outra prática dentro do CRF era o uso de títulos de nobreza ou de patentes militares pelos participantes, semelhantes aos atribuídos às entidades. Segundo depoimentos colhidos, a esposa do presidente Antônio Costa, dona Josefina Ortiz Costa, usava o título de rainha, já uma participante, de nome Dulce, usava o título de princesa etc.

Os participantes do CRF portavam patentes militares, que variavam de marechal a soldado, para fazer distinções hierárquicas entre os membros do culto. Antônio Costa ocupava o cargo de Marechal, André Costa e Irineu ocupavam o de General, outros, os de major, tenente, sargento e assim por diante. Diz-se que usavam uma farda branca com detalhes azuis, onde as distinções eram marcadas por divisas pregadas nas roupas (Moreira e MacRae, 2011).

Os autores supracitados assinalam que, durante o seu funcionamento, o CRF sofreu grande perseguição policial, isso exigia que se tomassem medidas de precaução, como variar os locais de culto, inclusive fazendo reuniões do outro lado da fronteira, na Bolívia. Assim, a organização e seus membros eram perseguidos tanto pela polícia brasileira como pela polícia boliviana.

Não consideramos como determinante para análise do funcionamento do CRF o fator repressivo institucional, e sim um possível “pano de fundo”, isto é, a repressão estatal e social que cotidianamente sofriam trabalhadores rurais negros e as etnias indígenas. Obviamente suas atividades associativas despertavam suspeitas.

Existia uma legislação oficial em curso, pós-abolicionista (de 1890), que criminalizava o que se considerava “feitiçaria”: a prática ilegal da medicina, a magia e proibia o curandeirismo e o uso de “substâncias venenosas” (MacRae, 1992). São mecanismos institucionais de estigmatização e perseguição das comunidades negras e indígenas brasileiras.

Entretanto, o poder controlador e repressivo do Estado vai encontrar limites materiais e territoriais para se fazer valer. O contingente policial de Brasil e Bolívia nestes longínquos rincões deveriam ser insuficientes para impor uma maior vigilância e controle das atividades realizadas por seringueiros em um vasto e de difícil acesso território.

O Círculo de Regeneração e Fé funcionou até 1925, e provavelmente Irineu Serra dele participou até essa data, pois sua mudança para a Capital do Território do Acre só se deu ao término da década. O pertencimento do futuro mestre e hierofante brasileiro a esta organização foi fundamental para o seu aprendizado religioso-espiritual e vivências com a ayahuasca. Este legado ele leva consigo para, em 26 de maio de 1930 dar início ao seu culto, o replantio da Santa Doutrina do Nosso Senhor Jesus Cristo no solo fértil da floresta amazônica.

Conhecendo, mesmo que minimamente, algumas características do CRF, podemos estabelecer relações, fazer comparações e perceber influências desta organização na Doutrina do Daime que surgiria depois, e o seu processo de institucionalização ao longo dos anos.

 Quanto as entidades do mundo espiritual que “trabalhavam” nesta casa (CRF), e também o seu panteão de deidades, estes seres são comuns a religiosidade popular brasileira, de matrizes europeias, ameríndias e africanas. Encontram correspondentes nos cultos de tambor de mina maranhense, no candomblé baiano, no xangô pernambucano, no batuque gaúcho e na umbanda carioca. Esses seres do mundo invisível se manifestam nas casas de culto como orixás, pretos-velhos, caboclos, erês e encantos dos mistérios do Céu, da Terra e do Mar.

A Doutrina do Santo Daime

A Doutrina do Santo Daime é praticada através de culto essencialmente musical. A mensagem doutrinária é transmitida através de hinos recebidos do mundo espiritual. O conteúdo das mensagens expressa a base religiosa e filosófica da doutrina, constituem o contato do daimista com a realidade sagrada. São revelações divinas manifestadas na forma de poesia musicada.

O fundador da Doutrina, Raimundo Irineu Serra, foi o primeiro a receber os hinos, de caráter cristão, em louvor a Deus e a Virgem da Conceição e mensagens de instrução moral. Quando se mudou para Rio Branco, capital do Território do Acre, tinha apenas seis hinos, que seriam a chave da formação da sua doutrina.

Seus discípulos de primeira hora também começam a receber hinos, e vai se organizando aquela comunidade religiosa, sob a sua liderança e carisma. Será demorado e lento o processo de ritualização das cerimônias, estabelecimento dos ritos, a constituição do fardamento e outros procedimentos. Isto se dará ao longo de mais de quarenta anos.

Como líder comunitário e religioso, será chamado de padrinho e mestre pelos seus seguidores.

Mestre Irineu rebatiza a bebida hoasca como Daime ou Santo Daime. Isto simboliza uma ressignificação, a cristianização da ayahuasca, bebida utilizada até então por índios e caboclos amazonenses para diversos fins.

Os principais ritos da Doutrina do Daime são os hinários bailados e as concentrações. Os hinários serão cantados e bailados nas datas festivas do calendário cristão — ou em outros festejos (aniversários etc.); e as concentrações realizadas nos dias 15 e 30 de cada mês.

 A estrutura ritualística e organizacional da Doutrina do Santo Daime se assemelha à de um exército. Os seus adeptos vestem fardas (vestimenta ritual) e são identificados como “soldados da Rainha” (Rainha da Floresta, a Virgem da Conceição). O dirigente supremo é o General Juramidã.

No imaginário de alguns daimistas o instrumento musical maracá, tocado por todos no ritual de Hinário, é também um instrumento espiritual e concebido como uma arma – quando o instrumento vira espada. Dessa maneira, o soldado da Rainha considera-se composto e armado para travar a batalha do bem, do amor

 A organização é dividida em batalhões masculino e feminino, tanto para os adultos como para os jovens. Existe um comandante para cada uma das fileiras e um comandante-geral do salão.

 Disciplina e obediência são requisitos exigidos para os membros da irmandade, assim como nas Forças Armadas das nações. Porém, não existe uma estrutura de comando verticalizada, rígida e piramidal, pois a mesma foi abolida por Mestre Irineu ainda em vida, devido a abuso de autoridade praticada por alguns “superiores hierárquicos”.

Isto significa que ao longo das décadas a ritualística foi passando por mudanças e aperfeiçoamentos. O fardamento atual é resultado destas transformações.

Foi assim: em 12 de novembro de 1957, Irineu Serra retornou ao Maranhão, sua terra natal, para visitar os familiares e amigos, e também rever o mar. Navegando no mar bravio da costa atlântica nordestina, mirando sobre as ondas do mar sagrado, ele recebeu as instruções das alterações que deveria fazer.

Nessa miração Mestre Irineu recebeu, do Alto, uma instrução ritualística de mudança da farda, muito significativa para o seu batalhão, pois resultou em melhoria de relacionamento dentro da irmandade.

A farda era até então uma túnica militar (dólmã), chapéu branco e calça branca, e o distintivo eram estrelas. Coronel usava seis estrelas, tenente-coronel usava cinco e assim continuava, em ordem decrescente. Devido ao comportamento autoritário e abusivo de alguns — ou muitos — “oficiais”, o Mestre Irineu fez a modificação para se portar apenas uma estrela por participante do culto, pendurada no lado esquerdo do peito – cultivando assim a equanimidade e o igualitarismo.

Deixou de existir no Exército de Juramidã hierarquia piramidal, porquanto todos são iguais. As necessárias funções de comando dos batalhões perfilados no salão passam a ser regimentais e estatutárias, imprescindíveis para a organização e condução dos trabalhos, e não mecanismos de tornar alguns “muito viçosos”.

A indumentária feminina também foi sendo concebida gradativamente, com a colaboração ativa das mulheres da irmandade: a farda branca com coroa sobre a cabeça, saiote, alegrias, broches de palmas e flores… tudo isso requeria um toque feminino.

A farda azul feminina é composta de saia azul marinho, plissada; camisa branca de manga curta com gravatinha laceada e, no bolso do peito esquerdo as iniciais CRF — Centro da Rainha da Floresta, menção as iniciais do Círculo de Regeneração e Fé, ao qual Raimundo Irineu Serra pertenceu.

O ritual de Concentração

As técnicas de meditação e concentração são muito disseminadas no Ocidente, na atualidade. Houve a expansão do yoga, popularização de gurus indianos, divulgados em livros e outras publicações, o avanço da religiosidade oriental (budismo, hinduísmo…). Todavia, o Círculo Esotérico foi pioneiro no Brasil em expandir esses conhecimentos milenares da antiga Bharata (Índia), pátria espiritual da humanidade.

Mestre Irineu bebeu daquela fonte, como esoterista que era, e introduziu tais práticas na Doutrina a ele revelada, no ritual de meditação e concentração mental.

O ritual de Concentração é uma das principais cerimônias da Doutrina do Santo Daime. Nos dias 15 e 30 de cada mês, segundo estabeleceu o fundador, o participante desta função religiosa deve sentar-se confortavelmente, manter o corpo físico quieto, a espinha ereta e, o principal, silenciar a mente.

O “Livro de Instruções” do CECP orienta o filiado esoterista sobre o “modo de concentrar-se” com métodos do yoga e da tradição budista. Compara a mente a um “corcel desbocado” e o praticante a seu cavaleiro, que deve ser firme na rédea e não deixá-lo escapar, isto é, não deixar a mente vagar. Ensina também como fixar um ponto na tela mental e fazer deste o objeto de concentração. Se o praticante tiver “temperamento de devoção” deve fixar o pensamento numa imagem de um ser divino… etc. e muitas outras instruções que são deveras disseminadas e conhecidas no mundo de hoje.

Porém, o surpreendente é sabermos que, ainda nos anos 1930, Raimundo Irineu Serra transmite aos seus primeiros discípulos, homens rudes e analfabetos da mata, técnicas e práticas de meditação e concentração que são consideradas, até a atualidade, como de mais alto e profundo ensinamento espiritualista. E esta prática espiritual persiste e se mantém, já se constituindo em tradição, 85 anos depois, nas centenas de centros livres existentes nos quatro cantos do mundo.

O Círculo Esotérico e as demais religiões ayahuasqueiras: Barquinha e UDV

Daniel Pereira de Mattos, também maranhense, negro, marinheiro reformado e barbeiro na Cidade de Rio Branco (Acre), será seguidor de Mestre Irineu entre 1937 e 1945, quando, após revelação mística, se afasta das fileiras do antigo mestre e funda uma nova doutrina ayahuasqueira.

De Mestre Irineu ele receberá as bênçãos e incentivo para cumprir a sua Missão, inclusive os primeiros litros de Daime que utilizará nos trabalhos na sua igrejinha no meio da mata, na Vila Ivonete (Rio Branco – Acre).

Daniel Pereira, letrado, ex-aluno da Escola de Aprendizes-Marinheiros, se tornará esoterista e filiado ao CECP por influência de Irineu Serra. Além de fundar uma segunda doutrina ayahuasqueira (em 1945), funda também uma segunda doutrina ayahuasqueira esotérica, denominada Barquinha, ou Barco Santa Cruz.

A Doutrina de Mestre Daniel se alicerça nos 12 livros azuis das Ciências e Mistérios, que são as mesmas 12 Ciências Esotéricas discorridas por Valdomiro Lorenz no Livro de Instruções do CECP.

Não sabemos se José Gabriel da Costa era filiado ao CECP. O futuro Meste Gabriel, fundador de uma terceira religião ayahuasqueira (1961), realizará a reunião de fundação (‘recriação’) da União do Vegetal (UDV) na sede do Tattwa de Porto Velho (Rondônia). Depois disso sediará as cerimônias desta organização na olaria de sua propriedade, e a designará de ‘sede’.

— É sede porque eu cedi, dirá.

No mistério da palavra, associou a fonética da palavra ‘sede’ com o verbo ‘ceder’, conceder, permitir.

A União do Vegetal, apesar de não evidenciar vínculo ou influência do CECP, pode ser considerada também uma doutrina ayahuasqueira esotérica, ocultista, com os conhecimentos e mistérios só acessíveis aos membros do grupo, conforme a sua gradação e lugar na hierarquia.

Também no uso da bebida Ayahuasca, por parte dos udevistas, há semelhanças com o uso do Daime nas cerimônias de concentração, pois a Hoasca (ou Vegetal) deve ser bebida para fins de “concentração mental”.

Centro livre, centro livre, é preciso ter amor

Como já foi dito, Mestre Irineu foi formalizando e institucionalizando a sua agremiação religiosa lentamente, no curso de quatro décadas, através dos rituais de hinário e Concentração — os principais. Estimula os seus seguidores a se filiarem ao CECP. Quando já com um certo número de inscritos,  funda o Tattwa Centro de Irradiação Mental Luz Divina, do qual era o Presidente de Honra. Isto se deu em 27 de maio de 1963, sendo o dia e numero 27 emblemáticos para aquela organização esotérica.

O Tattwa Luz Divina funcionava como qualquer outro das centenas de células do Círculo Esotérico espalhadas pelo Brasil. Realizava sessões exótericas (abertas) nas segundas-feiras, onde se elevava o pensamento e, em comunhão, era cantado o hino esotérico, proferidas as orações, a Chave da Harmonia e a Consagração do Aposento. Havia o momento para a Concentração silenciosa, intercalada de leituras instrutivas. As sessões esotéricas (fechadas) eram realizadas no dia 27 de cada mês.

A particularidade e especificidade deste Tattwa estava no uso do Daime. E também na existência de rituais próprios, como os hinários bailados, exclusivo desta célula esoterista. As características do Tattwa Luz Divina fazia dele único, original. Pois mesclava a ritualística do CECP com os rituais em construção da Doutrina revelada a Irineu Serra pela Virgem da Conceição.

O gigantismo do CECP, com milhares de células e filiados, distribuídos por este país continental, as longas distâncias e dificuldades de comunicação, permitiam aos Tattwas uma considerável parcela de autonomia ritualistica e doutrinária, até porque, filosoficamente, havia uma difusa abertura por parte do Círculo Esotérico para, em não sendo uma religião, poder abrigar diversas manifestações de caráter religioso no seu seio.

Em sendo um conjunto de doutrinas e filosofias, o CECP se constituía revolucionariamente — para a época — numa instituição ecumênica e pluralista, em tempos de quase “monopólio” da espiritualidade brasileira por parte da Igreja Católica.

Dessa maneira, encontrava-se pelo Brasil Tattwas de diversos tipos e religiosidade: de influência espírita kardecista, da umbanda, cultos de matrizes africanas etc. Não conheço estudos sistematizados sobre este fenômeno, só depoimentos orais. Porém, se em Rio Branco-Acre a organização adquiriu características tão particulares, por que seria diferente em outras cidades, estados e regiões?

O CECP se apoiava em um poderoso empreendimento editorial: a Editora Pensamento. Suas mais vendidas publicações, como a Revista O Pensamento e o Almanaque d’O Pensamento (anual), faziam do Círculo uma organização com vasto e rico patrimônio material. Tanto a revista como a linha editorial epublicava e divulgava os temas de magnetismo, astrologia, clarividência, psicometria, terapêutica e o psiquismo em geral; a cabala judaica, o budismo, hinduísmo e outras filosofias orientais. Um dos “livros de cabeceira” do Mestre Irineu era “O Evangelho de Buda” de Yogi Kharishnanda, do qual ele bebeu na fonte.

Como doutrina letrada, baseada nos livros, ser filiado ao CECP era exclusivo dos discípulos alfabetizados ou semialfabetizados do Mestre Irineu. O Padrinho e líder espiritual cultivava um circulo intimo de amigos, com os quais realizava os estudos e as leituras bíblicas e esotéricas.

Há um interessante diálogo entre Mestre Irineu e um seu discípulo, o sr. João Facundes (Nica), que acabara de ler o exemplar do “Evangelho de Buda”, emprestado pelo velho Mestre.

Este perguntou a Nica o que tinha achado da leitura.

— Gostei Mestre. Muito.

— O que que você achou?

— Mestre, não achei diferença dele pro senhor não.

— Não?!

— Não senhor. Só a diferença… só que ele era um pagão.

Num livro virtual muito divulgado entre a comunidade ayahuasqueira, onde realizo um estudo exegético do hinário O Cruzeiro, do Mestre Irineu, afirmo que “a concepção filosófica da iluminação daimista — e a experiência extática mística revelatória proporcionada pelo Daime — tem parecença com a iluminação do príncipe Sidarta Gautama, o Buda”, e é diferente da “doutrina da iluminação divina agostiniana”. Ver em:

<http://portalsantodaime.com.br/materiasecao.php?id_materia_secao=83&idmateria=1>

Mas fica a questão: por que Mestre Irineu vinculou a sua Doutrina ao Círculo Esotérico?

Uma possível resposta sociológica é a da possibilidade de obter maior legitimidade social para a sua instituição através da filiação de seu centro a uma grande organização nacional.

Uma outra compreensão – cosmológica e transcendental – da “parceria” do Daime com o Círculo Esotérico é que, sendo esta uma linha humanista e mentalista, as suas instruções casam perfeitamente com a corrente do Daime dentro dos campos espirituais, estão de acordo com os ensinos da Rainha.

Pois a Doutrina do Daime associada ao Círculo Esotérico declara a existência e contribuição para a religiosidade terrena de grandes Instrutores Espirituais da humanidade, estuda a Ciência da Religião em seus múltiplos aspectos, utiliza o método científico de religião comparada e busca o que é subjacente a todas ou muitas das religiões.

As reuniões do Tattwa Luz Divina começavam com a entoação do Hino Espiritualista, puxado por dona Lourdes Carioca, e o Divino Pai Eterno era chamado de “Brahma Supremo”. “Não importa o nome de Deus, desde que seja o princípio supremo que rege todas as coisas” (Leonardo Boff).

Observem a grandeza cosmológica da Doutrina do Daime e do CECP: a prática do ecumenismo e pluralismo religioso há 50 anos ou mais, diferente dos fundamentalismos e intolerância religiosa dos tempos de hoje.

Estudo fino, estudo fino

Que é preciso conhecer

Aqui tem muita ciência

Que é preciso se estudar.

Encerramento das atividades do Tattwa Luz Divina

O Centro de Irradiação Mental Tattwa Luz Divina, filial rio-branquense do CECP, encerra as suas atividades ao término dos anos 1960. Contam que um membro de destaque do Tattwa, o sr. Francisco Ferreira (Chicão), rivalizando com o Mestre Irineu pela direção do Centro, denunciou à direção nacional da entidade que, nas reuniões acreanas, se fazia uso de uma beberagem alucinógena, de nome hoasca.

Moreira e MacRae consideram que: “no clima repressivo então reinante no Brasil, onde qualquer manifestação religiosa não católica era potencialmente sujeita a discriminação e perseguição, pode-se imaginar a reação preocupada e escandalizada da líder esotérica (Matilde Preiswerk Cândido), perante o que deve ter percebido como práticas de ‘baixo espiritismo’, envolvendo o uso de uma beberagem alucinógena, sendo mescladas às do CECP no Acre” (2011, p. 302).

Fontes orais afirmam que a Dona Matilde, Presidente do Supremo Conselho do Círculo Esotérico, teria enviado uma carta à direção e irmandade do Tattwa acreano, explicitando a incompatibilidade dos anseios da diretoria do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento com o uso do Daime.

Contam que a resposta de Mestre Irineu foi imediata:

— Se não querem o meu daime, também não me querem: eu sou o Daime e o Daime sou eu.

Frase que ficaria gravada no coração e na mente de todos os seus discípulos, a partir de então.

Com o afastamento do Mestre Irineu, os outros daimistas membros do Tattwa também se retiraram. Um seu discípulo depõe:

— A gente acompanhava ele, não era o Círculo Esotérico.

Na reunião da segunda-feira seguinte nenhum seguidor do Padrinho Irineu compareceu à sessão do Tattwa, e esse se extinguiu. O velho Mestre chegou a aconselhar seus amigos a continuarem, dizendo que as instruções eram muito boas.

Provavelmente o fim do Tattwa Luz Divina provocou certo alivio nos numerosos membros pouco letrados da comunidade daimista, que raramente recorriam a algum texto ou registro escrito. O esoterismo do CECP se filiava a uma tradição livresca que, apesar de suas conexões sociais prestigiosas, não deixaria de causar desconforto entre os analfabetos e semialfabetizados do Daime, contribuindo de maneira expressiva para a debandada que ocorreu na organização quando Mestre Irineu se retirou (Cemin, 2001), para fundar o seu Centro Livre.

Estranhamente, nessas narrativas orais dos eventos não aparece o nome do principal dirigente executivo do CECP à época, o Presidente-Delegado Geral Diaulas Riedel, que sucedeu o fundador após a sua morte, em 1943. Empresário paulista bem-sucedido, casado com a neta de Antônio Olívio, o Círculo Esotérico vivia então o seu apogeu, e o crescimento e expansão continuou mesmo com a ausência física do principal líder.

Como era uma imensa organização nacional, o declínio do CECP aconteceu gradualmente, com o seu encolhimento, e hoje é apenas uma pálida lembrança do seu passado. O mais preocupante é que não há renovação geracional, o que torna o seu futuro incerto, pois há fortes sinais de entropia organizacional.

Quais foram os fatores que levaram ao declínio do CECP? Certamente são muitos, e o principal os efeitos, a longo prazo, da morte do fundador, Antônio Olívio Rodrigues. Uma hipótese provável é que, da mesma maneira que a direção nacional não teve tolerância e aceitação de co-habitação com outra doutrina, lá no Estado do Acre, este exemplo se repetisse em outros Tattwas Brasil afora, forçando o desligamento de células e sócios.

Talvez paradoxalmente, os ayahuasqueiros que foram rejeitados e convidados a se retirar, costumam se filiar a esta organização ocultista, lhe dando fôlego e sobrevida. Vão em busca dos conhecimentos esotéricos levados a eles pela história da doutrina cantada do Daime.

O Centro de Iluminação Cristã Luz Universal

Com a sua saída do Tattwa Luz Divina, junto com toda a irmandade ayahuasqueira, Mestre Raimundo Irineu Serra sentiu a necessidade de formalizar e institucionalizar o seu (novo) Centro Livre, que a partir de então passou a ser designado de Centro de Iluminação Cristã Luz Universal (CICLU). Esta organização será registrada no Cartório de Rio Branco-Acre em 20 de Abril de 1971, poucos meses antes do seu passamento.

A condição ocultista desta agremiação foi confirmada, e as características comuns ao Tattwa Luz Divina também. Não é por acaso que a primeira reunião de Assembleia do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal acontecerá no 27 de janeiro de 1971 — dia 27, data principal do calendário do CECP e das reuniões esotéricas.

O CICLU será instituído como uma sociedade “perdurável e autônoma com função cristã, social, cultural e cívica em base jurídica, responsável por suas diretrizes de caráter privado”.

Raimundo Mestre Irineu Serra foi “merecidamente aclamado ‘Mestre Imperador’”, e empossados os membros titulares do Conselho Superior e Comunitário, o Mestre Imediato (sr. Leôncio Gomes da Silva), o Mestre Conselheiro, demais “conciliares” (conselheiros) e outras funções, inclusive administrativas.

Assim o Chefe Império organizou a sua agremiação esotérica. Se estabelecermos correspondências e correlações, vamos encontrar traços comuns ao antigo CRF e, principalmente, ao CECP.

Do Estatuto, Ata de fundação do CICLU e do Decreto de Serviço, este documento lido durante o ritual de Concentração, destacaremos alguns itens:

1. Esta agremiação, o CICLU, não se organiza estatutariamente como religiosa, e tem como base “o congraçamento de pessoas de varias denominações cristã, sem distinção de sexo, raça, cor, posição social ou classe”. Bem… o Daime é uma religião? Sobre esta pergunta escrevi e publiquei um artigo (link a seguir), mas adianto que considero esta uma “falsa questão”, pois para as Ciências Sociais se constitui sim em uma instituição de caráter religioso. Ver:

http://www.jornalgrandebahia.com.br/2015/08/o-daime-e-uma-religiao.html

2. A instituição fundada por Mestre Irineu se fundamenta no “Ecletismo Evolutivo”, o caráter eclético, ecumênico e pluralista da Doutrina, que será praticado principalmente pelas dissidências e suas ramificações que ocorrerão após a morte do fundador;

3. Característica de sociedade esotérica (oculta): “não se deve comentar sobre a reunião com quem não participou da mesma”;

4. Os ensinos transmitidos são de louvor e de instruções morais, cívicos e religiosos, e encontram-se nos hinos: “o Centro é livre, mas quem toma conta, deve dar conta; ninguém vive sem obrigação e quem tem obrigação tem sempre um dever a cumprir”.

E continua: “todos que tomam esta Santa Bebida, não só́ devem procurar ver belezas, primores, e sim corrigir os seus defeitos, formando, assim, o aperfeiçoamento da sua própria personalidade”.

No Santo Daime tudo se soma

Mestre Raimundo Irineu Serra adotou o lema do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento que hoje adorna as portas de entrada de muitas casas e centros daimistas – e os unifica: Hei de Vencer. Significa a continuidade da tradição esotérica, já há mais de um século.

Com a morte do fundador, é considerado um “processo natural” as tensões vividas pelos seus discípulos e as lutas por poder dentro da organização, com a formação de novas lideranças. Abre-se espaço para as dissenções e surgimento de outros centros, que avocam para si a continuidade da Doutrina que adotaram.

Todavia, desligados do centro original, criam-se as condições para as transformações e acréscimos nos rituais constituídos pelo fundador. Isto será realizado pela primeira dissidência organizada, em 1974, sob a liderança do Padrinho Sebastião Mota de Melo, que cria o Cefluris, atualmente Iceflu, e as demais instituições daimistas/ayahuasqueiras que vão surgindo.

Desejo destacar aqui, reforçando o título e tema desta breve comunicação — a Doutrina do Daime e o Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento — três coisas:

1. A continuação da afinidade doutrinária do Daime com as instruções do CECP, tanto no centro original como nas dissidências surgidas;

 2. As orações do CECP, como a Consagração do Aposento, foram incorporadas nos rituais pelos centros dissidentes que surgiram. Isto na dissidência mais antiga — o Cefluris — e em outras, talvez por influência desta;

3. Uma reflexão sobre o significado de “Ecletismo Evolutivo”.

Para Groisman (1999), ecletismo significa muito mais um conjunto de valores do que uma escola de pensamento. “Este conjunto de valores tem como base essencial a aceitação de tradições espirituais diversas na busca espiritual com o Daime” (p. 46).

O ecletismo está contido tanto no cerne da instituição CECP como na Doutrina do Daime, composta de elementos cristãos — a sua base — e também esotéricos, ameríndios e da tradição religiosa oriental. E este ecletismo é evolutivo porque pode ser considerado uma “”cosmologia em construção” (Araújo, 1999), incorporando ou antevendo a possibilidade de acréscimos de novos elementos filosóficos-religiosos.

Os antropólogos comumente utilizam do conceito difuso denominado “sincretismo” para compreensão de características da religiosidade popular. Talvez seja pertinente o seu uso para as dissidências do centro daimista original, porém considero impreciso para tipificar a Doutrina fundada por Raimundo Irineu Serra. O termo mais adequado é outro: ecletismo.

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Leia o artigo completo em: http://www.jornalgrandebahia.com.br/2015/10/a-doutrina-do-daime-e-o-circulo-esoterico-da-comunhao-do-pensamento.html


Publicado em: 05/11/2015

Autor: Juarez Duarte Bomfim

Fonte: jornalgrandebahia



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