Pisei na terra fria
Nela eu senti calor.
Ela é quem me dá o pão
A minha Mãe que nos criou.
A minha Mãe que nos criou
E me dá todos os ensinos
A matéria eu entrego a ela
E meu espírito ao Divino
Do sangue das minhas veias
Eu fiz minha assinatura
O meu espírito eu entrego a Deus
E o meu corpo à sepultura
Meu corpo na sepultura
Desprezado no relento
Alguém fala em meu nome
Alguma vez, em pensamento?
Pisei na Terra fria, o seu último hino, mestre Irineu recebeu entre os dias 17 e 18 de dezembro de 1970, depois do seu aniversário.[524] É o décimo e ultimo hino da Santa Missa e deve ser cantado também no dia dos Santos Reis, quando da “entrega dos trabalhos”, sem instrumento e sem bailado.[525]
O hino da terra fria, quando cantou a primeira vez, foi numa concentração. Após a concentração foi um chororó dentro da sede. (...) Ele se levantou e disse: “Hei! Vocês estão pensando que eu vou morrer, é? Não, não vou morrer agora não, vou morrer mais um dia...[526]
Sentindo que se aproximava o dia de sua passagem para o mundo espiritual, mestre Irineu se preocupava com a continuidade de seu trabalho. Com a saúde debilitada, dizia: “Eu não sinto dor. Eu não sinto fome. O que eu sinto é não ter a quem entregar o meu trabalho. E saudade de vocês. Eu sinto uma saudade tão grande de vocês que é isto que está me abatendo”.[527]
No final de junho de 1971 ele chamou a um de seus seguidores mais próximos, Leôncio Gomes e lhe entregou a direção dos trabalhos, dizendo:
Leôncio, tu vai assumir a direção dos trabalhos. Tu não vai ser o chefe. O chefe sou eu. Mas fique aí para receber as pessoas, para ensinar a doutrina. Escuta o que estou te dizendo, não faça mais do que estou te entregando. Porque se alteras alguma coisa, tu não vai resistir.[528]
E continua o relato de dona Percília:[529] no dia 30 de junho, a irmandade se reuniu para mais uma concentração. No final da função, mestre Irineu perguntou:
- Quem foi que viu o meu enterro?
Os presentes disseram que não tinham visto nada, e ele disse que havia recebido um remédio e que ficaria bem.
- E que remédio é este, mestre?
- É um remédio que tem em todo lugar... Eu cheguei a um salão onde havia uma mesa arrumada, toda composta com as cadeiras em seu lugar, só havia uma cadeira vazia, a da cabeceira.
Foi então quando a Virgem Mãe Soberana chegou ao seu lado e disse:
- De hoje em diante você é o chefe geral dessa missão. O General. Tu és o chefe no céu, na terra e no mar. Para todos os efeitos. Todo aquele que de ti se recorde e te chame de coração, e confie, receberá a luz.
Foi assim que, depois de 50 anos de trabalho, ele recebeu o seu comando espiritual.
E numa tarde de verão do 6 de Julho de 1971, na cidade de Rio Branco, capital do Acre, Raimundo Irineu Serra fez a sua passagem para o mundo espiritual, enquanto esperava um chá de folha de laranjeira que a filha Marta preparava. Nesse mesmo dia o seu corpo baixou à sepultura.
Continua Percília: “e a história do remédio é a terra onde se pisa. Ele não foi pra debaixo da terra? Ele não disse que tem em todo lugar? È a própria terra...”[530]
“Havia ali um vaso cheio de vinagre. Imediatamente correu um deles (soldado) a tomar uma esponja, embebeu-a em vinagre e, fixando-a numa cana e levando-a à sua boca dava-lhe de beber”... “Então Jesus, depois de ter tomado o vinagre, disse: Está consumado! Depois, tornando a dar um grande grito, Jesus entregou o Espírito, dizendo:
- Pai, em tuas mãos entrego o meu Espírito.
Dizendo isso, inclinou a cabeça, entregou o Espírito e expirou”.[531]
No hino “Pisei na Terra Fria” encontramos similitude com o enunciado do Nosso Senhor Jesus Cristo:
A matéria eu entrego a ela
E meu espírito ao Divino
Ela, a (mãe) Terra.
Certa vez, lá em Rio Branco, no Acre, me foi narrada uma poética e bela versão para o episódio da esponja que ensopada foi dada de beber a Jesus, embebida não de vinagre, mas de... daime.
Meu espírito, eu entrego a Deus,
e o meu corpo, à sepultura.
E na luz do daime, Jesus desceu a mansão dos mortos, para de lá ressuscitar ao terceiro dia.
Desde então, sempre que leio, vejo ou escuto essa passagem da paixão de Cristo, lembro dessa surpreendente versão. É consolador pensar no Nosso Senhor fazendo a sua última viagem, o vôo espiritual antes da ressurreição, na força e na Luz do Santo Daime.
Notas: [524] Depoimento de Percília Matos da Silva em Revista do Centenário do Mestre Imperador Raimundo Irineu Serra. Rio de Janeiro: ed Beija Flor, 1992, p. 24.
[525] MAIA NETO, Florestan J. Contos da Lua Branca. V. 1. Rio Branco: Fundação Elias Mansour, 2003, p. 61.
[526] Nonato Mendes in MAIA NETO, Florestan J. Contos da Lua Branca. V. 1. Rio Branco: Fundação Elias Mansur, 2003, p. 60.
[527] Depoimento de Percília Matos da Silva em MACRAE, Edward. Santo Daime y la espiritualidad brasileña. Quito-Ecuador: Ediciones Abya Yala, 2000, p. 29.
[528] Depoimento de Percília Matos da Silva em MACRAE, Edward. Santo Daime y la espiritualidad brasileña. Quito-Ecuador: Ediciones Abya Yala, 2000, p.29.
[529] Em MACRAE, Edward. Santo Daime y la espiritualidad brasileña. Quito-Ecuador: Ediciones Abya Yala, 2000, p.30.
[530] Depoimento de Percília Matos da Silva em MACRAE, Edward. Santo Daime y la espiritualidad brasileña. Quito-Ecuador: Ediciones Abya Yala, 2000, p.30.
[531] Mat 27:45-54; Mar 15:33-39; Luc 23:44-48; Jo 19:28-30.
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