108. Linha do Tucum


Eu canto aqui na terra
O amor que Deus me dá
Para sempre, para sempre
Para sempre, para sempre

A minha Mãe que vem comigo
Que me deu esta lição
Para sempre, para sempre
Para sempre eu ser irmão

Enxotando os malfazejos
Que não querem me ouvir
Que escurecem o pensamento
E nunca podem ser feliz

Esta é a Linha do Tucum
Que traz toda lealdade
Castigando os mentirosos
Aqui dentro desta verdade.

 

O tucum, ou tucunzeiro, é uma palmeira (Bactris setosa) muito comum em diversas regiões do Brasil, chega a atingir 12 metros de altura, e de suas grandes folhas se extrai uma fibra forte e útil, cujas nozes têm sementes que fornecem 30 a 50% de um óleo alimentício.

Labate e Pacheco, procurando matrizes maranhenses[407] na doutrina do Santo Daime, afirmam que Tucum apresenta relações estreitas com pelo menos dois grandes grupos de entidades espirituais da encantaria maranhense: a família de Légua Boji e a família dos Surrupiras. Ambos são encantados violentos e com atributos de trickster (enganador, trapaceiro, velhaco), tendo como uma de suas características o castigo impiedoso de pessoas que por qualquer motivo lhes desagradem. Uma das formas de punição usadas é induzir a pessoa a entrar dentro de uma touceira de palmeiras cheias de espinhos, tais como o tucum. Labate e Pacheco concluem então – forçadamente - ser “possível que ecos desse imaginário” encontrem-se no hino[408] "Linha do Tucum".

Este hino é também herdeiro das tradições indígenas ayahuasqueiras, onde fazem-se "chamadas" (cantos rituais) a entidades do mundo espiritual, para virem operar entre os humanos.

No hinário do Mestre Irineu, Tucum é o nome de um caboclo, “uma entidade de muita força, de muito poder”[409] que, quando necessitados, podemos chamá-lo três vezes para vir nos dar conforto, nos proteger dos malfazejos, entidades espirituais do astral inferior “que ficam perturbando as criaturas”.[410] 

Percília Matos da Silva nos descreve um singelo rito de evocação do “senhor” Tucum:

Você reza três Pai Nosso até onde diz... Livrai-nos, Senhor, de todo mal. Aí, pede licença ao Mestre Juramidã para chamar o senhor Tucum. Aí chama três vezes, repete três vezes seguidas e aí, fecha com a Salve Rainha. Depois da Salve Rainha você faz os seus oferecimentos. Oferece ao Mestre e a Sempre Virgem Maria aquelas preces que foram rezadas naquele momento e ao senhor Tucum, para ele ajudar. Se não é só o senhor, é fulano, é sicrano ou beltrano, também o senhor peça em nome dessas pessoas que estão necessitadas.[411]

Nos “hinários de cura” que, depois do seu passamento, foram criados por discípulos de Raimundo Irineu Serra, o hino “linha do Tucum” é cantado sempre com grande pompa, repetido três vezes. 

Novos adeptos urbanos da doutrina do Santo Daime, sob influência do paganismo New Age[412] costumam enfatizar demasiadamente o papel e função desses Seres Divinos na doutrina trazida pelo Mestre Irineu, chegando a afirmar que

(...) a linha do Santo Daime do Mestre Juramidã é a linha do Tucum. Este pode ser visto como imperador e defensor contra os obsessores que escurecem o pensamento e tiram a felicidade. Tucum é sinônimo de lealdade; defensor da verdade, ele castiga os mentirosos e os embusteiros.[413]

Quando se declara que a linha do Mestre Irineu é a “linha do Tucum”, e não apenas um subconjunto da sua cosmologia, a doutrina do Santo Daime sofre uma ressignificação, deixa de ser essencialmente cristã - como é insistentemente repetido nos hinos deste hinário – e abrem-se as portas para um “abuso” de ecletismo, que pode até ser considerado um desvio doutrinário, e o Santo Daime passa a ser considerado uma doutrina sincrética,[414] descaracterizando-se, e aqueles que assim a interpretam perdem (infelizmente) a compreensão da riqueza cosmológica da doutrina daimista, um corpo doutrinário único, consistente, completo, universal, e não a soma de diversos elementos, como em outras linhas espirituais sincretistas, não originais.

 

Notas:

[407] Terra natal do Mestre Irineu
[408] Beatriz Caiuby Labate e Gustavo Pacheco. As Matrizes Maranhenses do Santo Daime.
[409] Depoimento de Percília Matos da Silva a MAIA NETO, Florestan J. Contos da Lua Branca. V. 1. Rio Branco: Fundação Elias Mansur, 2003, p. 47.
[410] Idem, ibidem, p. 47-48; no hinário não se deve repetir esse hino.
[411] Idem, ibidem, p. 47.
[412] Movimento metafísico Nova Era.
[413] COUTO, Fernando da La Rocque. Santos e xamãs. 1989. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade de Brasília, p. 170; mas não são apenas os novos adeptos urbanos que têm essa percepção, alguns daimistas do norte do país também assim compreendem a “linha do Mestre Irineu”. Já outros tantos radicalizam no sentido oposto, ao fazerem uma ressignificação “católica” da doutrina, que até parece que gostariam de expulsar esses seres divinos ameríndios da Corte Celestial. 
[414] Sincretismo é a tendência à unificação de idéias ou de doutrinas diversificadas e, por vezes, até mesmo inconciliáveis; os antropólogos, ao tomarem regularmente como universo de pesquisa a organização Cefluris, reforçam e legitimam essa percepção.

 


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