84. Ia Guiado pela Lua


Ia guiado pela Lua
E as estrelas de uma banda
Quando eu cheguei em cima de um monte
Eu escutei um grande estrondo

Este estrondo que eu ouvi
Foi Deus do céu foi quem ralhou
Dizendo para todos nós
Que tem Poder Superior

Eu estava passeando
Na praia do mar
Escutei uma voz
Mandaram me buscar

Aí eu botei os olhos
Aí vem uma canoa
Feita de ouro e prata
E uma Senhora na proa

Quando ela chegou
Mandou eu embarcar
Ela disse para mim
Nós vamos viajar

Nós vamos viajar
Para um ponto destinado
Deus e a Virgem Mãe
Quem vai ao nosso lado

Quando nós chegamos
Nas campinas desta flor
Esta é a riqueza
Do Nosso Pai Criador.

 

Raimundo Irineu Serra, na sua Missão, é guiado pela lua, isto é, conduzido por “uma mulher vestida do sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça”.[335] Este é o comecinho da história, mito fundante da doutrina: a aparição da Virgem da Conceição para o nosso Mestre, lhe entregando os ensinos.

Quando eu cheguei em cima de um monte
Eu escutei um grande estrondo

“Abriu-se o santuário de Deus que está no céu... e houve relâmpagos, vozes e trovões, e terremoto e grande saraivada”.[336]

Esse estrondo que eu ouvi
Foi Deus do Céu foi quem ralhou
Dizendo para todos nós
Que tem poder superior

João, o evangelista, ouviu uma grande voz no céu, que dizia: “agora é chegada a salvação, e o poder, e o reino do nosso Deus, e a autoridade do seu Cristo; porque já foi lançado fora o acusador de nossos irmãos, o qual diante do nosso Deus os acusava dia e noite”.[337]

Eu estava passeando
Na praia do mar
Escutei uma voz
Mandaram me buscar

Despretensiosamente, Irineu Serra passeava nas areias da praia do belíssimo litoral do seu Maranhão, quando a Virgem Mãe lhe convocou para cumprir a sua destinação.

Aí eu botei os olhos
Aí vem uma canoa
Feita de ouro e prata
E uma Senhora na proa

Segundo a etnografia daimista “Guiado pela lua”,[338] os hinos são verdadeiros “roteiros de miração”, e esta linda e encantadora imagem da Senhora triunfante navegando na proa de um barco feito de ouro e prata transporta o participante do bailado ritualístico “para este reino... chegando muitas vezes a visualizar a Rainha da Floresta, a abandonar o seu corpo nesta viagem”[339]astral. Essas ricas imagens vivas, produzidas oralmente – este roteiro de miração – fazem com que o adepto viva “cada substantivo, metáfora e verbo como realidades plenas de significado, e de significados mais reais do que os da vida cotidiana – a luz brilha mais, as cores são mais ricas e puras, os sentimentos são exaltados”.[340]

Quando Ela chegou
Mandou eu embarcar
Ela disse para mim
Nós vamos viajar

Nos hinos da Doutrina do Santo Daime é recorrente o uso dos termos “viagem”, “viajar”, “viajou”... e que tem vários significados. Pode significar o estado alterado de consciência sob efeito da substância psicoativa daime, ao qual se dá o nome de miração; pode significar uma viagem astral no estado de vigília, que também é parte da miração, e pode significar a morte física de alguém. Este termo – morte - não utilizado, já que enquanto doutrina espírita, acredita-se que o ser humano é essencialmente espírito e o espírito não morre, faz uma passagem (viagem).

A “viagem” é também compreendida pelos antropólogos como um vôo xamânico, o transe extático do xamã, do pajé – um curador ameríndio que é “especialista do sagrado”[341], capaz de “ver” os espíritos, “de subir ao céu e descer aos infernos, combater os demônios, a enfermidade e a morte”.[342]

Para Couto[343] os membros desse sistema religioso são como aprendizes de xamã, ou xamãs em potencial. Embora existam os comandantes do trabalho, a atividade xamânica não é exclusividade apenas de alguns iniciados, como nas sociedades indígenas em geral, e a prática ritual é o aprendizado dessa arte do êxtase. Como todos têm participação ativa no ritual, a coletividade do culto pode, através de técnicas de concentração e acesso aos cânticos que são a principal ferramenta para as viagens extáticas, “voar” pelo astral com características do xamã viajante. O ritual envolvendo todos os membros do grupo num “batalhão” faz com que esse seja considerado um rito de xamanismo coletivo.

Nós vamos viajar
Para um ponto destinado
Deus e a Virgem Mãe
Quem vai ao nosso lado

A viagem é para um local determinado: o reino dos céus,[344] que é o domínio de Deus no coração humano, apregoado por Jesus, tendo o privilégio do Divino Pai Eterno e a Virgem Soberana Mãe viajarem ao nosso lado.

Raimundo Irineu Serra, tendo passado praticamente toda a sua vida na floresta, assim como Jesus, que tinha vivido os 30 primeiros anos de sua vida no meio rural[345] – o carpinteiro, o campineiro e o jardineiro - tomavam seus exemplos e metáforas do ambiente campestre, não urbano, e essa é a imagem do reino celestial ao qual fomos destinados:

Quando nós chegamos
Nas campinas desta flor
Esta é a riqueza
Do nosso Pai Criador

 

Notas:
[335] Apocalipse 12:1.
[336] Apocalipse 11:19.
[337] Apocalipse 12:10.
[338] MACRAE, Edward. Guiado pela lua. São Paulo: Brasiliense, 1992.
[339] LABATE, Beatriz Caiuby. A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos. Campinas; Mercado de Letras; Fapesp, São Paulo: 2004, p. 241.
[340] Ibidem, p. 241.
[341] COUTO, Fernando da La Rocque. Santos e xamãs. 1989. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade de Brasília, p. 194. 
[342] Mircéa Eliade, O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase apudCOUTO, Fernando da La Rocque. Santos e xamãs. 1989. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade de Brasília, p. 194.
[343] COUTO, Fernando da La Rocque. Santos e xamãs. 1989. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade de Brasília, p. 195.
[344] Expressão usada mais de trinta vezes pelo evangelista Mateus.
[345] DUQUESNE, Jacques. Jesus. A verdadeira história. 2 ed. São Paulo: Geração Editorial, 2000, p. 119; e RENAN, Ernest. A vida de Jesus. São Paulo: Martin Claret, 2004.

 


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