74. Só Eu Cantei na Barra


Só eu cantei na barra
Que fiz estremecer
Se tu queres vida eu te dou
Que ninguém não quer morrer

A morte é muito simples
Assim eu vou te dizer
Eu comparo a morte
É igualmente ao nascer

Depois que desencarna
Firmeza no coração
Se Deus te der licença
Volta a outra encarnação

Na terra como no Céu
É o dizer de todo mundo
Se não preparar o terreno
Fica espírito vagabundo.

 

Em inúmeras civilizações e religiões da Antiguidade já era presente a doutrina de reencarnação, como no Egito Antigo, no hinduismo, no budismo e na crença dos judeus (a Kabbalah). A igreja cristã primitiva aceitava a doutrina da reencarnação, a qual foi divulgada pelos gnósticos e por vários doutores da igreja, como Clemente de Alexandria, Orígenes e São Jerônimo (Século V). 

Na Era Moderna, foi Alan Kardec (1804-1869), o codificador do espiritismo, quem, n’O Livro dos Espíritos define a doutrina da reencarnação como "a que consiste em admitir para o Espírito muitas existências sucessivas"; a “roda de sansara” para os budistas, os ciclos de nascimento e morte aos quais estamos condicionados, antes da libertação final.

Subjacente à doutrina reencarnacionista está o freqüente contato entre o mundo dos vivos e dos mortos, isto é, as comunicações entre o mundo material, dos encarnados, com o mundo espiritual, dos desencarnados. Tanto no Velho como no Novo Testamento existem muitas passagens que atestam essas comunicações, como a consulta que o rei Saul fez ao espírito do profeta Samuel, através da médium de En-Dor.[293]

Comentando sobre essa passagem bíblica, Santo Agostinho admite: "Eis uma questão que ultrapassa as possibilidades da minha inteligência: como os mártires, que sem dúvida alguma vêm em ajuda de seus devotos, aparecem”.[294] 

Santo Tomás de Aquino, por sua vez, conta "que os mortos apareçam aos vivos desta ou daquela maneira, isso pode acontecer por uma disposição especial de Deus, que quer que as almas dos mortos intervenham nos negócios dos vivos”.[295]

Para aqueles que abraçam a doutrina reencarnacionista, é mais que evidente que, quando Jesus se refere a João Batista, Ele testemunha que “é este o Elias que havia de vir”,[296] porém “não o conheceram, mas fizeram-lhe tudo que quiseram”,[297] isto é, o assassinaram, como também o fariam ao Salvador. Os discípulos entenderam que Jesus lhes falara que o profeta Elias reencarnara como João, o Batista.[298] 

O cristianismo primitivo era reencarnacionista e mantinha um estreito contato entre o mundo terreno e o mundo espiritual, como atestam os romances históricos do Espírito Emmanuel, trazidos à luz pela psicografia de Francisco Cândido Xavier.[299]

Entretanto, foi no Concílio de Constantinopla, em 553 D.C, que a Igreja se posicionou contra a existência da reencarnação, por considerar a noção de reencarnação herética e contrária à crença na ressurreição dos corpos no dia do Juízo Final.

A condenação da doutrina da reencarnação se deve a uma ferrenha oposição pessoal do finado imperador Justiniano. Segundo o historiador Procópio de Cesárea, Teodora, a ambiciosa esposa de Justiniano, ex-cortesã, iniciou uma rápida ascensão no Império. Para se libertar do passado que a envergonhava, ordenou a morte de quinhentas colegas de ofício e, para não sofrer as conseqüências dessa ordem cruel em uma outra vida, empenhou-se em suprimir a doutrina da reencarnação.[300]

Porém, sabemos que as mudanças na história das idéias não ocorrem por vontade individual, e a supressão da doutrina da reencarnação dos cânones católicos aconteceu por que numerosos cristãos na época consideraram que a doutrina da reencarnação garantia ao homem tempo demasiado vasto, que podia desestimulá-lo a lutar por sua salvação imediata.[301] 

Na estrofe final deste hino

Depois que desencarna
Firmeza no coração
Se Deus te der licença
Volta a outra encarnação.

afirma-se a continuidade da vida após a morte, quando se semeia o que plantou. Aí, intimamente associada à doutrina da reencarnação encontra-se a lei do carma (causa e efeito). Isso nos remete a uma outra reflexão: a doutrina do Santo Daime é uma doutrina espírita?

Lá nos Hinos Novos (Cruzeirinho), considerados a síntese e resumo da doutrina, mestre Irineu afirma "todos querem ser irmãos, mas não têm a lealdade para seguir na vida espírita que é o reino da Verdade" (Hino nº 118) Será essa a afirmação da concepção espírita da Doutrina de Raimundo Irineu Serra?

Consideramos que sim. A doutrina do Santo Daime é uma doutrina espírita, replantada nos rincões da floresta amazônica, onde esse “saudoso e eminente maranhense”, “instrutor por mais de seis décadas” no estado do Acre, “legou à humanidade um manancial fulgurante, rico e belo de precioso conteúdo” evangélico, nas poéticas palavras de Sebastião Jacoud.[302]

No cristianismo moderno, a crença na reencarnação dos mortos sobrevive nas correntes espíritas, havendo ainda, entre as doutrinas ayahuasqueiras a Barquinha de frei Daniel Pereira de Matos e a União do Vegetal do mestre José Gabriel da Costa.

Pensamos que uma doutrina ayahuasqueira necessariamente é uma doutrina espírita, pois ao tomar essa bebida de “poder inacreditável” - "liana dos espíritos"; "vinho dos mortos"; "vinho dos espíritos" - o usuário entra em contato com o mundo invisível, onde encontra entidades desencarnadas e seres de outros planos astrais, característica espírita.

O fenômeno de "receber" hinos é mediúnico, semelhante à psicografia e a psicofonia. E a mediunidade um fenômeno espírita, de comunicação com o mundo invisível.

A história do recebimento deste hino está ligada à passagem do Antônio Gomes, que ocorre três dias após.

Antonio Gomes, muito doente, pressentiu o momento da sua “viagem” e mandou chamar o “padrinho Irineu”, “pra dar uma solução pra ele que ele tava com medo da morte”.[303] E nos conta o seu neto, Walcírio Gomes da Silva:

- Irineu rapaz, e agora? Tô com medo, tô sem conforto. Eu sei que vou morrer.

Aí o Padrinho Irineu disse:

- Calma! Eu vou te dar uma resposta, mas não agora.

Aí o Padrinho Irineu foi pra casa, tomou Daime pra... Porque antigamente a pessoa chegava com algum problema assim, ele tomava um Daime, e ia em busca da cura lá em cima, né... Ele trazia de qualquer maneira, a cura. Só que ele tomou Daime, e aí veio o hino. Só Eu Cantei na Barra. (...) O Padrinho Irineu foi lá onde tava o vô e aí ele disse:

- Eu trouxe a resposta que eu tava lhe devendo.[304]

Quando o “padrinho Irineu” cantou o hino, chegou o conforto para Antonio Gomes. “Ele entendeu, compreendeu a mensagem”[305]. Foi uma palavra de consolo muito grande.

Na hora da sua passagem, Antonio Gomes reuniu a família, toda a irmandade, e mandou todos rezar.

- Comecem a rezar, a rezar...

E o povo rezando o Pai Nosso, a Ave Maria... O velho moribundo, como patriarca cioso, ainda teve forças para repreender:

- Tem gente que não está rezando!...

Revigoradas as preces, o seu Antonio Gomes, um dos primeiros companheiros do mestre, partiu serenamente para o mundo espiritual[306], como em mahasamadhi[307] de um grande iogue.  

O hino começa com uma “chamada” comum à tradição ayahuasqueira

Só eu cantei na barra
Que fiz estremecer

onde é recorrente a idéia da barra. E aí, o significado da "barra" - entrada de um porto; linha de arrebentações de onda junto à costa; foz do rio; nuvem carregada que surge no horizonte – qualquer que seja o significado trás sempre a idéia de limite, de fronteira. A barra neste hino pode ter o sentido onírico, ontológico, da viagem para o mar sagrado, na barca dos desencarnados, a viagem individual para o outro lado, o grande desprendimento. E o hino segue afirmando a continuidade da vida nesse outro lado, fruto da graça divina:

Se tu queres vida eu te dou
Que ninguém não quer morrer

Pois ela – a morte, conseqüência do pecado – é o último inimigo a ser vencido[308]. Daí a importância de “preparar terreno”. Pois, este hino, no dizer de Froés, “explica a morte como uma passagem para outra vida. É a crença na reencarnação, mas para ser possível, a pessoa deve realizar uma preparação correta durante a vida”.[309]

Bailando e balançando o maracá, cantamos a seguir

Se Deus te der licença
Volta a outra encarnação

A licença divina para uma outra oportunidade na Terra é a prova inconteste do amor e misericórdia de Deus por seus filhos. É a oportunidade da reparação, da regeneração, do cumprimento de missão e iluminação espiritual.

Para Bayer Neto, o termo "volta a outra encarnação" poeticamente permite duas interpretações: voltar em outra encarnação, e também voltar a (lembrar) outra encarnação (passada). Uma é ação de dentro para fora, e outra é de fora para dentro - ação e miração.[310]

Sebastião Jacoud diz que aqueles antigos seguidores dele (de Jesus Cristo), alguns apóstolos e outros de outra categoria (... ) estão por aí encarnados em pessoas simples sem nome no cenário nacional, político ou artístico, vieram atender o chamado dele e por aqui estão ajudando a levar para a frente essa Doutrina.[311]

Reza a tradição oral que o mestre Irineu, sentado em sua cadeirinha de balanço do alto da varanda de sua casa, na hoje Vila Irineu Serra, olhando o povo passar na rua, dizia:

- Muitos desses que estão passando aí em frente viveram no tempo de Cristo e nem sabem...

Pela doutrina espírita, quando encarnados não nos é permitido lembrar de outras existências, a não ser para algum fim edificador. Por isso, só nos resta torcer para que - se foi este o caso – ao pé da Cruz estivéssemos ao lado dos que choraram a morte do Salvador...

 

Notas:
[293] I SAMUEL 28:7-25.
[294]SANTO AGOSTINHO, O cuidado devido aos mortos. cap. 16, 20 apud TEIXEIRA de FREITAS, Luis Carlos. Disponível em <http://www.juramidam.jor.br/12_eu-peco.html > Acesso em 22 mar 2005.
[295]SANTO TOMÁS DE AQUINO, Suma de Teologia. Q. 89, artigo 8 apud TEIXEIRA de FREITAS, Luis Carlos. Disponível em <http://www.juramidam.jor.br/12_eu-peco.html > Acesso em 22 mar 2005.
[296] S. MATEUS, 11:14.
[297] S. MATEUS, 17:12.
[298] S. MATEUS, 17:13.
[299] Há dois mil anos; 50 anos depois; Ave, Cristo; Paulo e Estevão. Todos publicados pela Federação Espírita Brasileira.
[300] http://geocities.yahoo.com.br/luizahpbr/Frases-Nticker/su1.html
[301] PARAMAHANSA YOGANANDA. Máximas.de. Impresso na Coréia: Self-Realization Fellowship, 2001.
[302] No Jornal Rio Branco, de 14 de maio de 1975 apud COUTO, Fernando da La Rocque. Santos e xamãs. 1989. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade de Brasília, p. 43. 
[303] MAIA NETO, Florestan J. Contos da Lua Branca. V. 1. Rio Branco: Fundação Elias Mansur, 2003, p. 38.
[304] Apud MAIA NETO, Florestan J. Contos da Lua Branca. V. 1. Rio Branco: Fundação Elias Mansur, 2003, p. 38-39; Luis Mendes do Nascimento dá depoimento semelhante em Revista do Centenário do Mestre Imperador Raimundo Irineu Serra. Rio de Janeiro: ed Beija Flor, 1992, p. 24.
[305] MAIA NETO, Florestan J. Contos da Lua Branca. V. 1. Rio Branco: Fundação Elias Mansur, 2003, p. 39.
[306] Depoimento ao autor de Percília Matos da Silva, em 28 de junho de 2004.
[307] Do sânscrito maha, “grande”, samadhi. A derradeira meditação ou comunhão consciente com Deus, quando um mestre perfeito funde-se no Om cósmico e abandona o corpo físico. Um mestre sabe sempre com antecipação a hora, escolhida por Deus, de abandonar sua residência corporal. In PAHAMAHANSA YOGANANDA, A eterna busca do homem. Impresso nos Estados Unidos da América: Self-Realization Fellowship, 2001, p. 478.
[308] "A morte corporal, à qual o homem teria sido subtraído se não tivesse pecado", é assim "o último inimigo" do homem a ser vencido (1 Cor 15:26).
[309] FRÓES, Vera. Santo Daime. Cultura amazônica. História do povo Juramidã. Manaus: SUFRAMA, 1986, p.105.
[310] BAYER NETO, Eduardo. Mensagem transmitida em e-group uniaodosantodaime@yahoogrupos.com.br. 22 mar 2005.
[311] Sebastião Jacoud in Livro dos Hinários. Centro de Iluminação Cristã Luz Universal Alto Santo. Gráfica do Senado Federal, s/d, p. 1

 


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