69. Passarinho


Passarinho está cantando
Descorrendo o ABC
E eu descorro a tua vida
Para todo mundo ver

Passarinho está cantando
Canta na mata deserta
Dizendo para o caçador
Você atira e não acerta

Passarinho verde canta
Bem pertinho para tu ver
Sou passarinho e tenho dono
E meu dono tem poder

Passarinho verde canta
Com alegria e com amor
Sou passarinho e canto certo
E com certeza aqui estou.

 

Deus é tudo e todos, Todos Seres, e olha por toda sua criação. Aqui é apresentada uma de suas criaturas, um singelo passarinho, cantando solitariamente na floresta, e a sua pungente melodia cala tão fundo no coração que é como se examinasse as nossas vidas.

Passarinho está cantando
Canta na mata deserta
Dizendo para o caçador
Você atira e não acerta

É comum a crença, em diversas regiões rurais brasileiras, na existência de seres encantados defensores da floresta,[270] que vivem na mata zelando pelas árvores e animais. Esses encantados voltam-se “contra qualquer um que queira caçar apenas por prazer, ou desmatar a floresta sem propósito”.[271] Por outro lado, são amigos dos que vivem na mata sem agredi-la, caçando apenas para alimentar-se e respeitando a flora”.[272] Para atrapalhar os que não agem com boas intenções ecológicas, esses encantados têm muitas artimanhas, porquanto podem

(...) assombrá-los com seus gritos agudos, açoitá-los, tornar-se invisível e aparecer em vários lugares, até fazer com que aqueles que tentam contra a vida na floresta percam o rumo. Também faz com que o bicho encurralado pelo caçador, vire meuã, que significa portar-se de repente como gente, fazendo gestos para implorar piedade. Assim, o caçador fica assombrado, não consegue mais fazer pontaria e foge apavorado. Diz-se que muitos caçadores, depois de terem visto a caça virar meuã, nunca mais se atreveram a caçar.[273]

Neste hino encontram-se ecos dessa lenda, ressignificada pela doutrina do Santo Daime, onde o ente protetor dos animais não é mais um ser ambíguo, com qualidades dúbias de caráter, pois o Ser Divino que se apresenta como dono desses frágeis animaizinhos e “tem poder” de protegê-los é o próprio Divino Pai Eterno; é a Rainha da Floresta. Pois Jesus disse: "Olhai para os passarinhos do céu, que não semeiam, nem ceifam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial os alimenta”.[274]

E o Cristo continua: “Não se vendem cinco passarinhos por dois centavos? E nenhum deles cairá ao chão sem o consentimento de vosso Pai.”[275]

E o auxílio divino válido para os passarinhos vale também para nós, os seres humanos. ”Até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados”;[276] “Não temais, pois; mais valeis vós do que muitos passarinhos”.[277]

Quão amáveis são os teus tabernáculos, Senhor dos Exércitos! A minha alma está desejosa, e desfalece pelos átrios do Senhor; o meu coração e a minha carne clamam pelo Deus vivo. Até o pardal encontrou casa, e a andorinha ninho para si, onde ponha seus filhos, até mesmo nos teus altares.[278]

A história deste hino está relacionada a amizade entre Raimundo Irineu Serra e Daniel Pereira de Matos, o Frei Daniel, fundador da linha ayahuasqueira denominada “Barquinha”.

Pois conta-se que quando Daniel chegou ao Acre no final dos anos 1930 como oficial da reserva da Marinha Mercante, já encontrou Irineu Serra à frente de seu trabalho doutrinário com o Santo Daime, vivendo no bairro da Vila Ivonete. Daniel era alguns anos mais velho que Irineu Serra, também negro, e é provável que se conhecessem desde o Maranhão.[279]

Daniel se tornou vizinho do Mestre Irineu, mas não esteve acompanhando a Doutrina como seu discípulo, estando casado com uma mulher que seria uma mãe-de-santo e que fazia trabalhos de catimbó em sua residência. Quando este casamento acabou, a mulher o teria deixado com uma macumba que o dominou totalmente, entregue à bebida e sem poder realizar os mínimos cuidados pessoais. O Mestre, que estava então se mudando para a estrada da Colônia Custódio Freire, na colocação que depois se tornaria o Alto Santo, incumbiu um de seus discípulos que vivia perto de Daniel para todos os dias lhe dar um copo de Daime e assim fazer um tratamento espiritual para sua cura.[280]

Na conclusão dessa cura, quando Daniel Pereira de Matos se restabeleceu e foi ao Alto Santo passar a noite de São João no hinário do Mestre, é dito que o Padrinho Irineu, ao caminhar de sua casa para a igreja, ao fim do intervalo, recebeu o hino "Passarinho". Corria o ano de 1945.[281]

Passarinho Verde canta
Com alegria e com amor
Sou Passarinho e canto certo
E com certeza aqui estou

Quando, nas noites festivas em que bailamos e balançamos o maracá ao cantar o hinário do Mestre Irineu - o nosso Passarinho Verde - sentimos que “com certeza” ele continua aqui, cantando aos nossos corações, com alegria e com amor.

 

Notas:
[270] Como o Curupira. Será que vem daí o Currupipiraquá?
[271] ALIVERTI. Márcia Jorge. Uma visão sobre a interpretação das canções amazônicas de Waldemar Henrique Estudos Avançados vol.19 no.54 São Paulo Aug. 2005. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142005000200016&script=sci_arttext&tlng=pt Acesso em 01 de novembro de 2005.
[272] Ibidem.
[273] Ibidem.
[274] Mateus 6:26
[275] Lucas 12:6-7
[276] Mateus 10:30
[277] Lucas 12:6-7; “Não valeis vós muito mais do que eles?" In: Mateus 6:26
[278] Salmos 84: 1-3
[279] BAYER Neto, Eduardo. Tesouros do Ramefletluz. Número 4 - 10/08/2003. HINODASEMANA Discussion List. Disponível em <hinodasemana@yahoogrupos.com.br> Acesso em 06 de agosto de 2003.
[280] Ibidem.
[281] Ibidem.

 


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