55. Disciplina


Vou chamar os meus irmãos
Quem quiser venha escutar
Se ficar firme, apanha
E se correr vai sofrer mais

Minha Mãe, minha Rainha
Com amor ninguém não quis
Apanhar para obedecer
Na estrada para seguir

Mestre bom ninguém não quis
E não souberam aproveitar
Apanhar para obedecer
Para poder acreditar

Fica assim a disciplina
Quem quiser pode correr
Se eu falar do meu irmão
Estou sujeito a morrer.

 

A obediência é claramente destacada no hinário O Cruzeiro Universal, do Mestre Raimundo Irineu Serra, e todos os outros hinários fazem referências a ela de uma forma ou de outra, porque ela é um dos componentes básicos do processo de ajuste do adepto ao sistema doutrinário[207]. É mencionado o uso do castigo[208] como forma de conseguir a obediência, a disciplina dos membros da irmandade.

Isso nos remete a algo que é comum às diferentes tradições ayahuasqueiras – e a vivência do ayahuasqueiro - que é a experiência de levar peia. A peia do Daime. Assim define Goulart a este fenômeno:

A "peia" refere-se a uma espécie de castigo aplicado pelo Daime ao sujeito (...) o chá do Santo Daime é visto por estes religiosos como um "ser divino" que possui vontade própria. A "peia" pode se expressar de várias maneiras. No sentido mais imediato ela significa uma "surra", em geral sentida por aquele que, durante os rituais, ingere o chá. A surra pode implicar num excesso de vômitos, numa crise de diarréia, ou então em sensações emocionais desagradáveis. A "peia" diz respeito a uma situação mais ampla, ligada a trajetória pessoal do indivíduo. Assim, ela pode ocorrer fora dos rituais da doutrina, aludindo a um período da vida do sujeito.[209]

Sendo inerente a todos ou quase todos daimistas, a peia adquire múltiplos significados. Okamoto da Silva, que trata do tema em sua dissertação de mestrado, enumera várias de suas características. Segundo ele, a peia:

· É parte integrante e quase sempre presente nos rituais e a qual todos estão sujeitos;
· é um castigo ou disciplina aplicada "pelo daime" em decorrência de uma conduta inadequada, expressa por uma "falha moral" ou desconhecimento dessa falha;
· é conseqüência da desobediência à instruções recebidas “do astral";
· se manifesta como um descontrole sobre os efeitos da bebida;
· proporciona uma "limpeza" física, mental e emocional. É natural a ocorrência de vômitos e outros efeitos purgativos;
· é vista como benéfica, no sentido de conscientizar o sujeito sobre falhas e erros cometidos, e sobre as formas de corrigir essas deficiências;
· auxilia na interpretação e dá significado a infortúnios ou dificuldades vivenciadas pelos adeptos em suas vidas.[210]

E tome peia:

Se ficar firme apanha
Se correr vai sofrer mais

(...)

Apanhar para obedecer
Na estrada para seguir

Túlio Cícero Viana, com sua inspirada verve, assim descreve certo episódio:

Padrinho (Sebastião) falou que tomaríamos um Daime de dez anos de idade feito pelo Mestre Irineu. No dia da concentração, fomos convocados juntos com outras pessoas escolhidas, pois era só um litro daquele poderoso Daime. Sei que tomei minha dose e sentei numa cadeira, fechando os olhos para esperar a viagem. Escutei uma ventania pesada, ela vinha se aproximando. Ouvi as janelas do templo se abrindo, cachorros latindo, gatos emitindo um som raro. Pensei: “Isto é só na minha cabeça”. Abri os olhos e me assustei quando vi que realmente aquilo acontecia, do meu lado tinha um gato que sofria uns ataques esquisitos, enquanto vomitava. Tornei a fechar os olhos, percebi uma imensa legião de espíritos perdidos que provocavam todos aqueles desmandos. Antes não acreditava nestas coisas, mas diante daquela realidade estava abismado. Eles açoitavam o templo em todas direções, a sensação é que ele podia desabar. Mantinha-me firme grudado na cadeira. Aprontaram tanto e foram indo embora, até voltar a tranqüilidade. Então uma fogueira se acendeu dentro de mim, esquentava minha cabeça, dando-me a sensação de que meu cérebro derretia. Espiritualmente enxergava meu cérebro derretido como um líquido dourado, ele escorria por caminhos infinitos espalhando cores por todos os lados. Pensei; “Estou morrendo!” Quando me dei conta de que ainda permanecia vivo, estava na maior sessão de vômitos, tombado na cadeira com a cabeça entre as pernas. ... até Padrinho dar por encerrada a concentração (...) Dácio veio, me deu um abraço e me disse ao ouvido: “Hoje eu vi o Mestre Irineu (...) Ele estava muito bravo e me chicoteou com um enorme jagube...”

... Mesmo assim, Dácio sentia-se muito orgulhoso de vê-lo pessoalmente lhe disciplinando.[211]

O castigo como método de disciplina ocorre porque “Mestre bom ninguém não quis, não souberam aproveitar”, assim sendo o ensino passa a se dar através da peia.

Lembremos de Jesus Cristo que, investido de um chicote de cipó, chegou expulsando os vendilhões do templo;[212] e o Apóstolo Paulo pergunta: “que quereis? Irei ter convosco com vara ou com amor e espírito de mansidão?”[213] 

Apanhar para obedecer
Para poder acreditar

E qual é a maior das peias? Os irmãos do Norte costumam dizer que a maior das peias é tomar daime e não mirar.[214] 

E o hino encerra com um alerta, após toda essa peia:

Fica assim a disciplina
Quem quiser pode correr
Se eu falar do meu irmão
Estou sujeito a morrer.

Aqui ocorre um aparente paradoxo: sendo uma doutrina reencarnacionista, e portando, que crê na preexistência do espírito e a continuidade da vida após a morte física,[215] por que o irmão rebelde está sujeito a morrer?

O livro de Apocalipse nos fala da segunda morte[216], da morte espiritual daquele que é julgado pelas suas obras e, estando em falta, é separado do Pai e lançado no lago de fogo, no inferno, nos planos astrais inferiores, de muita dor e sofrimento.[217].

Esse, lamentavelmente, é o destino daqueles cujo nome não for achado escrito no livro da vida.[218] 

 

Notas:
[207] CEMIN, Arneide. Os rituais do Santo Daime: Sistemas de montagens simbólicas.
[208] BAYER, Eduardo. O culto à personalidade e o espírito de seita, 2005.
[209] GOULART , S. L. As raízes culturais do Santo Daime. São Paulo: Dissertação de mestrado defendida na FFLCH-USP, 1996. p. 42,43 apud SILVA, Leandro Okamoto da. Marachimbé chegou foi para apurar Estudo sobre o castigo simbólico, ou peia, no culto do Santo Daime São Paulo: Dissertação de mestrado defendida na PUC-SP, 2004, p. 93.
[210] SILVA, Leandro Okamoto da. Ibidem, p. 94.
[211] VIANA, Túlio Cícero. O consagrado defensor. Belo Horizonte: Líttera Maciel Ltda, 1997, p. 102-103.
[212] MATEUS 21:12; Hino nº 68, Doutrina do Cipó, de Alex Polari.
[213] I Coríntios 4: 21.
[214] Miração são as visões e insights proporcionados pela bebida, o daime.
[215] Assim como a possibilidade de reencarnação do espírito em outro corpo
[216] Apocalipse 20: 6;14
[217] A literatura espírita discorre sobre planos astrais inferiores, os umbrais, no qual vão parar muitos dos devedores. O Espírito André Luiz, em sua vasta obra psicografada por Chico Xavier escreve, com surpresa, que encontrou enormes cemitérios no plano astral em que se achava.
[218] Apocalipse 20: 15.

 


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