46. Eu Balanço


Eu balanço e eu balanço,
E eu balanço tudo enquanto há.

Eu chamo o sol, chamo a lua
E chamo a estrela,
Para todos vir me acompanhar.

Eu balanço e eu balanço,
E eu balanço tudo enquanto há.

Eu chamo o vento, chamo a terra
E chamo o mar,
Para todos vir me acompanhar.

Eu balanço e eu balanço,
E eu balanço tudo enquanto há.

Chamo o cipó, chamo a folha
E chamo a água,
Para unir e vir me amostrar.

Eu balanço e eu balanço,
E eu balanço tudo enquanto há.

Tenho prazer, tenho força
E tenho tudo,
Porque Deus eterno é quem me dá.

 

O termo “balanço” é muito freqüente no vocabulário dos daimistas, e pode ter múltiplos significados. Evoca inicialmente um movimento oscilatório, um vaivém, o movimento das ondas do mar, porquanto “este trabalho tem muita envolvência com o mar. Do mar vem muita força”.[173] O balanço também embala, impulsiona. Para os daimistas messiânicos da linha do Padrinho Sebastião o termo balanço significa “crise” e, num sentido maior, tem o significado aterrador de um grande abalo, uma catástrofe que acontecerá com o nosso planeta e para o qual devemos estar preparados.[174]

Mas esse não parece ser o sentido de balanço neste hino. Balanço aqui mais se assemelha a uma dança, o bailado ritualístico daimista; e um balanço (avaliação, cálculo, balancete) sobre as qualidades trinas contidas na cosmologia daimista.

Eu chamo o sol, chamo a lua
E chamo estrela
Para todos vir me acompanhar

É feito o chamado dos astros luminosos da esfera celeste, que se constituem elementos fundamentais da formação do Universo; simbolizam a totalidade da iluminação cósmica.

Eu chamo o vento, chamo a terra
E chamo o mar
Para todos vir me acompanhar

São chamados os elementos da natureza – o ar, a água e a terra - da onde vêm toda força divina: o ar, símbolo do céu, o Cosmos, o Infinito, em todas as direções. As águas do mar sagrado expressam um ponto de referência, “o Espírito de Deus pairava sobre as águas”,[175] símbolo do inconsciente coletivo. O mar encoberto por “uma superfície algumas vezes plácida, outras agitada, aquilo que está oculto, os mistérios, os segredos”.[176] O mundo causal, “talvez não a causa última”[177], pois esta é formada pelo Todo, mas onde estão guardadas as chaves para este Todo - que se revela na terra.

Chamo o cipó, chamo a folha
E chamo a água
Para unir e vir me amostrar

A bebida sagrada conhecida como Daime é feita da decocção da folha rainha-chacrona (Psichotrya viridis) e do cipó jagube (Banisteriopsis caapi). O chá resultante desse preparo é usado nos rituais da doutrina do Santo Daime - culto popular nascido no Alto Amazonas - e é central para o desenvolvimento do trabalho espiritual dessa linha religiosa. Nos rituais de canto, bailado ou concentração acontece o transe místico, através da “alteração do estado de consciência” induzido pela ingestão dessa bebida de “poder inacreditável”.

Esses estados alterados de consciência são experiências em que a pessoa tem a impressão de que o funcionamento habitual de sua consciência se modifica e que ele vive uma outra relação com o mundo, consigo mesmo, com seu corpo, com sua identidade.[178]

O uso da ayahuasca (nome quéchua para a bebida) tem origem entre as populações amazônicas de cultura indígena. Se atribui a ela poderes telepáticos adivinhatórios e curativos. Seus efeitos são freqüentemente profundos, levando a quem os utiliza a experiências de êxtase e revelação mística. Costuma-se utilizar pejorativamente o termo “alucinógeno” para classificar essa substância. Procurando restaurar o respeito e consideração ao uso cultural dessas plantas, pesquisadores propuseram o uso de outra palavra classificatória para tais efeitos, o termo “enteógeno” (a realização de Deus no interior).

Os efeitos da bebida enteógena daime trazem a “miração”, insights que abrem “portais de percepção” para mapas mentais e cognitivos. Entre os daimistas se diz que depois de tomar a bebida, o indivíduo fica “pegado” ou “mira”. Nesse estado ele está sujeito não só a experiências visionárias e auditivas como também a revelações ou intuições de grande profundidade e emoções. E é essa planta maestra, o “professor dos professores”,[179] que é chamada para mostrar a Verdade – que é Deus – ao devoto que bebe da Santa Luz.

Assim, mirando e balançando o maracá dentro do salão, podemos cantar:

Tenho prazer, tenho força
E tenho tudo
Porque Deus Eterno
É quem me dá

 

Notas:
[173] DEPOIMENTO de Percília Matos da Silva. Disponível em http://www.mestreirineu.org/percilia.htm Acesso em 12 de novembro de 2005.
[174] Movimento político-religioso baseado na crença em um enviado divino (já presente ou ainda por vir) que anuncia e prepara a abolição das condições vigentes, e por fim instaura, ou reinstaura, uma era de plena felicidade e justiça. In: NOVO DICIONÀRIO Aurélio Século XXI; ver BAYER Neto, Eduardo. O messianismo xamânico da Santa Maria. Revista A Arca da União. Disponível em http://geocities.yahoo.com.br/arcadauniao/index2.htm Acesso em 14 de novembro de 2005.
[175] Gênese 1:2.
[176] SITE OFICIAL DA BARQUINHA. Centro Espírita Obra de Caridade Príncipe Espadarte. Disponível em http://www.pierredz.net/temp/abarquinha/apres.htm Acesso em 14 de novembro de 2005.
[177] Idem, ibidem.
[178] MACRAE, Edward. Guiado pela lua. Xamanismo e uso ritual da ayahuasca no Culto do Santo Daime. São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 189.
[179] Hino nº. 84 do Padrinho Alfredo Gregório de Melo.

 


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