6. Papai Paxá

Equior, Equior, Equior
Equior que me chamaram
Eu vim beirando a terra
Eu vim beirando o mar

Quando Papai Paxá
Barum, Marum mais eu
Saudade, saudade
Saudade de Mamãe

A tua imagem linda
É meus encantos, enfim
Neste mundo e no outro
Vós se alembrai de mim

O amor que eu te tenho
Dentro do meu coração
É vós quem me guia
No caminho da salvação

Quando Papai me chamar
Toda a vida obedeci
Quando chegar este dia
Eu só tenho que ir

 

Este hino inicia-se com um chamado (ou ?chamada?, freqüente nos ritos ayahuasqueiros)[41]. Labate e Pacheco chamam a atenção para que ?equiô? é uma ?interjeição comum usada pelos vaqueiros da Baixada Maranhense para reunir e tanger o gado?: ?Equiô, equiô, equiô!?. No hino nº 18 deste mesmo hinário (e cantado na Santa Missa) novamente ?equiô? aparece como uma ?interjeição? de comando (vir, reunir, juntar, agrupar):

Equiô Papai me chama
Equiô perante a si
Equiô Papai me diz
Equiô eu sou feliz

Equiô Mamãe me chama
Equiô Mamãe me dá
Equiô Mamãe me ensina
Amar a quem eu devo amar

Por isso, neste hino nº 6, que invoca tantas entidades ? Papai Paxá, Barum, Marum ? pergunta-se: será ?Equiô? mais uma deidade do panteão daimista? Assim como Labate e Pacheco gostaríamos de sugerir a possibilidade de que o termo "Equiôr" não se refira - pelo menos não exclusivamente - a uma entidade específica, como se poderia pensar, mas seja uma interjeição usada para chamar algo ou alguém. Essa interpretação é coerente com o próprio texto dos hinos.[42]

Percília Matos da Silva, zeladora do hinário, confirma a tese de que Equiô não é um ?Ser Divino da Corte Celestial? quando, em depoimento, afirma que

Equiôr, Equiôr, quer dizer: eu estou. Tanto faz dizer estou como ?Equiôr?. É uma interpretação de linguagem. ?Equiôr, Equiôr, Equiôr que me chamaram...? Ele quer dizer: eu estou aqui, porque me chamaram.[43] 

Surpreendente é que, no caso, equiô pode ser visto tanto como o chamado, como a resposta, ?eu estou aqui por que me chamaram?. 

Bayer Neto relata que Equiô na língua yorubá - língua dos negros africanos que para cá vieram escravizados, e é língua hegemônica nos cultos afro-brasileiros ? significa doutrina, sugerindo que esta não é apenas uma coincidência. Fróes considera que neste (e em outros hinos) se revela a influência de religiões africanas na doutrina, quando apresenta seres divinos como ?Papai Paxá, Equiô, Barum e Marum?.[44]

Ao nosso ver, nada indica que essas denominações sejam de origem africana, é mais provável que venham de linhagem ameríndia. Ainda conforme dona Percília:

O Papai Paxá é uma entidade. Têm muitos deles. Tem caboclo, tem índio, tem outros de outras linhas, mas tudo linha do bem, só para fazer o bem. Qualquer um desses que chamar pode fazer uma cura.[45]

E quanto à propalada influência das religiões africanas na doutrina do Mestre Irineu, essa influência não parece existir diretamente,[46] tanto pelas suas origens, pois ?a família de Raimundo Irineu Serra observou sempre estreita lealdade à Igreja Católica?,[47] e ?há que se registrar que sua mãe era muito católica?,[48] como principalmente pelo caráter cristão das mensagens doutrinárias.

As influências das religiões afro-brasileiras vieram a se dar nas derivações doutrinárias surgidas após a passagem (falecimento) do fundador da doutrina, Mestre Irineu. Três das quatro igrejas (centros) existentes no Alto Santo praticam a doutrina sem esse caráter ?eclético?. 

Para Bayer Neto, este hino foi a instrução que Irineu Serra obteve para que pudesse abrir trabalhos para outras pessoas, ocupando a direção de um ritual[49] e ?com estes seis hinos em mãos viajou para Rio Branco, capital do Território do Acre?[50]. Preparado como Mestre (incluindo todo o rito de iniciação com a dieta da macaxeira insossa), ?restava-lhe a grande missão de preparar a Doutrina?.[51]

Quando eu conheci o Padrinho Irineu, ele só tinha 6 hinos. E assim mesmo a gente passava a noite cantando. Ele tinha seis, um tinha dois, o outro tinha três... quando terminava o derradeiro, a gente voltava para o Cruzeiro de novo e assim ia, até o dia amanhecer.[52]

Dessa maneira, progressivamente, foi que o ritual de hinário com bailado foi se estruturando.

Eu vim beirando a terra
Eu vim beirando o mar

Este hino deixa entrever a sua vinda em matéria para o Norte do país, onde abriu a sua missão, e também a sua vinda ?de longe / das ondas do mar sagrado?.[53] A sua vinda do mundo espiritual para encarnar[54] no ?mundo Terra?, e trabalhar a benefício dos seus irmãos.

Como soldado da borracha, Irineu Serra alistou-se em um navio para ir a Amazônia. Numa longuíssima viagem ? e extensas paradas - o navio margeou a costa brasileira até Belém, navegou subindo o rio Amazonas até Manaus, de Manaus se sobe o rio até o encontro com o Purus, sobe o Purus até a Boca do Acre, continua a epopéia e se chega ao então Território do Acre.

Estava viajando sozinho, sem destino, com a idade de 15 anos. Até que de Manaus veio para o Acre, do Acre para a Bolívia e da Bolívia para o Peru.[55] 

Neste hino, ele canta

Quando Papai Paxá
Barum, Marum mais eu
Saudade, saudade
Saudade de Mamãe

E a saudade que dona Joana d'Assunção Serra, sua mãe, tinha por ele era recíproca e tão grande que, conta-se, em alguns finais de tarde ela fazia bolo de milho ? o preferido do seu filho Irineu ? esperando a sua volta.[56]

Quando Irineu Serra retorna ao seu querido Maranhão, no final de 1957, para rever os familiares, não a encontra mais encarnada. Talvez antevendo esse acontecimento, canta:

A tua imagem linda
É meus encantos, enfim
Neste mundo e no outro
Vós se alembrai de mim

Nos versos seguintes, Mestre Irineu prossegue:

O amor que eu te tenho
Dentro do meu coração
É vós quem me guia
No caminho da salvação

sugerindo ser acompanhado em sua "viagem".[57] Isso nos remete à iniciação de Irineu Serra com a ayahuasca, ao lado dos irmãos Antônio e André Costa.

Antônio Costa estava no quarto e ele na sala. Aí o Mestre olhou a lua e abismou-se com ela. Antônio Costa, lá de dentro, disse:

- Raimundo, aqui tem uma senhora que quer falar contigo. (...)
- Antônio, pergunta o nome dela.
- Ela disse que o nome é Clara. E ela está te acompanhando desde o Maranhão (grifos nossos). Ela disse também que na próxima sessão vai te procurar.

Na quarta-feira, ele tomou o Daime outra vez. Era lua nova.

E a senhora no centro da lua perguntou:

- O que você está vendo?
- Estou vendo uma deusa. O que estou vendo, se o mundo inteiro visse, o navio parava no oceano
.[58]

A essa bela visão da Deusa Universal, Mãe Divina, Rainha das Flores, Virgem da Conceição e seus múltiplos nomes o hinário sempre recorre.

O hino encerra com a derradeira chamada. Quando o Divino Pai Eterno nos chamar, a alma liberta, cumpridora dos deveres, poderá dizer: ?eu só tenho que ir?.

Quando Papai me chamar
Toda vida obedeci
Quando chegar este dia
Eu só tenho que ir


Notas:
[41] Também denominados ícaros.
[42] LABATE, Beatriz Caiuby; PACHECO, Gustavo. As Matrizes Maranhenses do Santo Daime. Em uma cantiga de pajelança, recolhida em Cururupu, os autores encontram o uso do termo também em contexto religioso, que parece ser uma invocação (chamado): Equiô, equiô / Meu maracá convidou curador (Terreiro de Roberval). In idem, ibidem.
[43] Percília Matos da Silva em depoimento a MAIA NETO, Florestan J. Contos da Lua Branca. V. 1. Rio Branco: Fundação Elias Mansur, 2003, p. 24.
[44] FRÓES, Vera. Santo Daime. Cultura amazônica. História do povo Juramidã. Manaus: SUFRAMA, 1986, p.103-104.
[45] Percília Matos da Silva em depoimento a MAIA NETO, Florestan J. Contos da Lua Branca. V. 1. Rio Branco: Fundação Elias Mansur, 2003, p. 24.
[46] Indiretamente talvez sim, devido ao caráter tricontinental da formação da cultura brasileira (de influência européia, ameríndia e africana).
[47] BAYER NETO, Eduardo. A relíquia do Yagé.
[48] LABATE, Beatriz Caiuby; PACHECO, Gustavo. As Matrizes Maranhenses do Santo Daime
[49] BAYER NETO, Eduardo. A relíquia do Yagé.
[50] BAYER NETO, Eduardo. A relíquia do Yagé. Foi um hino recebido ainda em Brasiléia.
[51] BAYER NETO, Eduardo. A relíquia do Yagé.
[52] Depoimento de Raimundo Gomes da Silva. In: Livro dos hinários. Centro de Iluminação Cristã Luz Universal Alto Santo. Brasília: Gráfica do Senado Federal, 1990, p. 14.
[53] Hino nº 110 d?O Cruzeiro Universal.
[54] TEIXEIRA de FREITAS, L.C. Disponível em http://www.juramidam.jor.br/10_sol-princesa.html Acesso em 20 abr 2005.
[55] Depoimento de Francisco Grangeiro Filho. Disponível em http://www.mestreirineu.org/chico.htm Acesso em 20 abr 2005. Essa mesma viagem ele repete em 1958, de volta da visita à terra natal, com os seus três sobrinhos.
[56] Florestan J Maia Neto. Informação oral, em 06 jul. 2006.
[58] Depoimento de Francisco Grangeiro Filho. Disponível em http://www.mestreirineu.org/chico.htm Acesso em 20 abr 2005.

 


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