4. Formosa


Formosa, formosa, formosa
É bem formosa
Formosa, é bem formosa
Tarumim, tu sois formosa
Formosa, é bem formosa

Formosa, formosa, formosa
É bem formosa
Tarumim, eu estou com sede
Tarumim, tu me dá água
Tarumim, tu sois Mãe D’Água
Tarumim, tu sois formosa
Formosa, formosa, é bem formosa

 

 

O hino Formosa nomeia a Mãe das Águas[26] como Tarumim, entidade cabocla, e elogia um elemental da natureza a fim dele receber proteção, o que confere o traço de religiosidade indígena à doutrina em formação.[27]

Essa Mãe D'Água pode estar o maior verão, se o senhor cantar três vezes seguidas num dia este hino, pode fazer chover. Já aconteceu com meu cunhado. Ele morava na colônia e diz ele que estava uma sequidão medonha. E aí ele disse: Eu vou chamar a Tarumim. Aí, cantou o hino três vezes. Resultado: deu um temporal que vinha derrubando tudo. Destelhou até casa. Aí ele falou que nunca mais ia fazer isso.[28]

Os elementais das águas são seres mitológicos - como as ondinas ou sereias - cultuados por diversos povos do globo. A teosofia reconhece o mundo dos elementais como sendo uma parte do mundo espiritual oculto, que coexiste com o nosso mundo. Elementais são seres correspondentes aos quatro elementos da natureza - terra, água, fogo, ar. Os corpos dos elementais são formados de uma matéria mais sutil que a matéria física, quando se tornam visíveis estão no plano etérico (mais sutil que o gasoso); e quando ficam invisíveis eles estão no plano astral (plano mais sutil que o etérico).[29] Na miração de olhos abertos às vezes vemos essas entidades manifestas.

Encontra-se aqui um tema para reflexão, recorrente também em muitos outros hinos: a presença dos caboclos, de entidades ameríndias, possivelmente de elementais – paradoxalmente seres pertencentes à cultura do gentio, do pagão - ao tempo em que a doutrina de Raimundo Irineu Serra se anuncia cristã em inúmeras passagens do seu hinário. Conforme Teixeira de Freitas:

-A doutrina daimista é cristã, isto é, tem como núcleo pétreo de fé a crença em que nosso Senhor Jesus Cristo foi Deus feito homem e veio ao mundo para redimir quem nele creia e a ele peça porque crê [30].

“Jesus Cristo veio ao mundo replantar santa doutrina”, e a missão do Mestre Irineu é a mesma missão de Jesus, a sua continuação na condição de professor dessa escola espiritual.

Entretanto, esse paradoxo (paganismo-cristianismo) é apenas aparente, pois não podemos confundir a vertente daimista da doutrina cristã com a matriz católica, da qual parece se originar ou sofrer influência. Isso porque encontramos – na doutrina daimista – uma recriação, uma readaptação do cristianismo católico do colonizador europeu com elementos da cultura do colonizado ameríndio.

Quando do encontro de culturas com a descoberta da América, no processo colonizador começa a ocorrer a chamada “ocidentalização do mundo”, e aqui nos importa o seu aspecto cultural. Originária da Europa, a “ocidentalização do mundo” sintetiza-se em padrões e valores sócio-culturais, formas de pensamento, possibilidades de imaginação[31] levados pelos europeus para os quatro cantos do planeta. No aspecto religioso, provocou a expansão do cristianismo.

Porém, o encontro de culturas, formas de vida ou modos de ser raramente é único, unívoco, unilateral, ainda que sempre haja o predomínio de um sobre o outro. Sendo assim, “as sociedades tribais, regionais e nacionais, compreendendo suas culturas, línguas e dialetos, religiões e seitas, tradições e utopias não se dissolvem, mais recriam-se”,[32] readaptam-se.

O cristianismo católico aqui transplantado encontra distintas configurações civilizatórias, culturais, religiosas, lingüísticas e étnicas – na América do Sul combinando heranças hispânicas e portuguesa com aborígines e africanas. Isso gera novos desenvolvimentos de ocidentalidade, pois no encontro de culturas “em geral, ocorre a troca, simbiose, influência recíproca, ao mesmo tempo que ambos ou todos se recriam, desenvolvem e mudam”. A afirmação “da ocidentalidade seria impossível sem a latino-americanidade” [33]. Simultaneamente, as culturas ou os modos de ser que se desenvolvem na América Latina podem adquirir outras possibilidades e outros horizontes.

Na medida em que as diferentes sociedades, culturas, tradições, línguas e religiões encontram-se, tensionam-se e mesclam-se, emerge a pluralidade de perspectivas. “Alguns cânones do pensamento ocidental podem ser alterados, recriados ou mesmo rompidos” [34], e “desvendam uma ocidentalidade diferente, estranha, insólita e pagã”[35], ocidentalidade que se manifesta em condições diversas, alterada, comparativamente com as originárias.

Walter Dias Jr. considera que a doutrina do Santo Daime “constituiu-se a partir de um vigoroso movimento, relacionado com o avanço do universo mágico-religioso dos povos da floresta em direção às cidades”. E que sua condição de existência “reside, justamente, nessa abertura para a fusão de diferentes e, por vezes, até antagônicas influências, crenças e concepções religiosas”.

Trata-se de uma expressão de religiosidade com características de “culto periférico” que se expande levando consigo a marca do “diferente”, do “estrangeiro”, do “dominado”, do "aculturado".[36] 

É nesse contexto que podemos compreender a religiosidade brasileira, com as suas manifestações na forma de – no caso das religiões ayahuasqueiras – Santo Daime, Barquinha, União do Vegetal; e também na umbanda e demais cultos afro-brasileiros.

E a santa doutrina replantada por Nosso Senhor Jesus Cristo e trazida ao Brasil por ordem da Virgem Mãe Divina ao mestre Raimundo Irineu Serra Juramidam – com o seu panteão hierárquico constituído pelos “seres divinos da Corte Celestial” – pode ser considerado o cristianismo da floresta, a doutrina e a luz da floresta.

 

Notas:
[26] Entidade da religiosidade popular maranhense, a pajelança. In LABATE, Beatriz Caiuby Labate; PACHECO, Gustavo. As matrizes maranhenses do Santo Daime. O uso ritual da ayahuasca 2ª ed. São Paulo: Mercado de Letras, 2004.
[27] BAYER NETO, Eduardo. A Relíquia do Iagé.
[28] DEPOIMENTO de Percília Matos da Silva. Disponível em http://www.mestreirineu.org/percilia.htm Acesso em 12 de novembro de 2005
[29] Disponível em http://www.caminhosdeluz.org/A-123.htm Acesso em 28 mar 2005; e disponível em http://www.sitemrhell.hpg.ig.com.br/htm/duendes.htm  Acesso em 28 mar 2005.
[30] Teixeira de Freitas, Luiz Carlos. A identidade, o propósito e o método da doutrina daimista. Artigo enviado para doutrinadaimista@yahoogrupos.com.br em 23 mar 2005. 
[31] IANNI, Octavio. A sociedade global. 9ª ed. Capítulo 4. A ocidentalização do mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
[32] IANNI, Octavio. A sociedade global. 9ª ed. Capítulo 4. A ocidentalização do mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 78.
[33] Idem, ibidem, p. 82.
[34] Idem, ibidem p. 86-87.
[35] Idem, ibidem, p. 88.
[36] DIAS Jr., Walter. Céu do Mapiá: a “terra prometida” ou uma nova “torre de babel”? Disponível em < http://altodasestrelas.blogspot.com/ > Acesso em 31 mar 2005.

 


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