Artigo de Antoine Yan Monory



Padrinho Corrente

 

 "Quando lembrar de mim
Não chora, canta por favor...
Sou um passarinho, vivo a voar
Adeus água, adeus floresta
Adeus tudo que deixei aí..."
(Baixinha)

EM HOMENAGEM AO PADRINHO MANOEL CORRENTE, NO ANO DE SUA PASSAGEM, ASSIM ESCREVEU O IRMÃO ANTOINE YAN MONORY ("Revista da Flor das Águas", Número 1 - 1996, Rio Branco - Acre):

"Ele era nascido o dia 29 de setembro, dia de São Miguel, e desencarnou com 85 anos.

Ele foi uma pessoa que chegou ao Daime depois do seu filho, o Chico Corrente, começando desta forma no Alto Santo com o Mestre Irineu em vida. Ele contava que tinha até um certo medo do Mestre, e do Daime, naquele tempo. Depois que o Mestre se foi, eles lá mandaram ele acompanhar o Padrinho Sebastião, há pouco tempo separado da igreja fonte e que havia ido fundar o seu próprio centro na dita Colônia Cinco Mil.

Pela sua trajetória ele foi um companheiro fiel deste último, em muito grandes e delicados momentos, se tornando também um grande general na espiritualidade. Pelo final ele foi esta pessoa de Luz, muito especial, pessoa chave do seu reinado, sendo um guardião e um orientador de peso para muitos.

Um caráter próprio das pessoas iluminadas ou realizadas espiritualmente é de terem muitas vezes, na idade avançada principalmente, uma energia de criança, na pureza, na soltura, na inocência. E assim era ele, embora soubesse também muito bem dar umas boas disciplinas quando precisasse, sendo por esse lado bem sério, e com muito conhecimento. Trazia com ele um forte poder de cura e de limpeza, que se manifestava de modo geral só pela sua presença - além de, por vezes, assumir formas inesperadas ou incomuns - , com muita simplicidade.

Era uma pessoa, justamente, muito simples, e muito lúcida no seu tempo, que ensinava a humildade pelo seu próprio comportamento. Ele tinha os lábios leporinos, e tinha que prestar atenção quando ele falava, porém se entendia "quase tudo", e ele falava coisas grandes e pequenas, muitas vezes mensagens que só anos mais tarde iríamos lembrar e entender, e era um ser muito querido e fino, uma "flor de pessoa", e até quase uma fadinha dos Contos...

Foi pai de uma grande e importante família, com uns filhos e umas filhas especiais como são a Francisca e o Francisco, este Chico, médium forte e sábio.

Temos uma história de sua infância para contar, sendo que ele nasceu no Nordeste, no Piauí, e veio de navio para o Acre na época da borracha. Ele tinha perdido o seu pai cedo, e com onze anos estava um dia em casa quando chegou por lá alguns capangas do famigerado Lampião. Perguntaram se tinha comida, e ele respondeu que não, que não tinha... Aí, eles pegaram ele e puseram uma pistola em cada orelha... vendo a morte de perto, como contava... Mas não aconteceu nada com ele, porém botaram o seu companheiro, mais adulto, para correr atrás dos cavalos.

Ele era uma pessoa de disciplina, que não gostava de ver as pessoas brincar com a espiritualidade, sendo que ele era um esteio espiritual importante da Corrente de Luz da qual participava.

Temos uma lembrança querida deste nosso velho, sendo que foi ele, quando das primeiras vezes que nos deparamos com o Sagrado Feitio do Daime, que nos ensinou a cuidar das folhas da Rainha, com todo carinho e atenção "como há de ser". Era lavando, várias lavagens, fiscalizando de alguma forma a catação das mulheres, na força das águas doces, sob a luz do Sol ou do luar, e a luz do Divino Mestre... Foi ele quem zelou mesmo das folhas, durante muitos anos, pondo-as aconchegadas nas folhas de bananeira, as regando sempre, por vezes escondidas em recantos discretos sob a sombra fresca da verde e amorosa floresta. Isto há de ser lembrado!...

Ele falava uma coisa muito boa para nós lembrarmos agora, sendo quase um hai-ku taoísta (uma frase ou idéia curta, de caráter enigmático, tendo um significado espiritual para destrinchar), de que QUEM ESTÁ CERTO ESTÁ ERRADO, E QUEM ESTÁ ERRADO ESTÁ CERTO.

Podemos relacionar isto com a temática das normas de ritual, ou das formas "certas" ou apropriadas de agir de modo geral, e assim às vezes uma pessoa parece estar "errada" mas está certa porque está seguindo o seu coração, a sua intuição, o seu próprio destino...

Nos últimos tempos da sua vida, estando doente materialmente, ele pode visitar e receber ajuda da casa da Irmã de Caridade Francisca Gabriel, como é chamada, e assim comprovando o valor de uns para com os outros... Ele gostou de lá, e falou que o Mestre era único!

Este humilde "Mestre", na sua Linha, estava justamente lutando para a sua saúde, e ele não queria e não achava que era o momento de partir ainda, até pouco tempo antes do seu desencarnar. Eram desta forma sempre realizados muitos trabalhos de cura e atendimentos para ele. Porém, dentro desta luta, ele chegou num ponto em que decidiu ir mesmo...

Foi antes do São José de 1996, e ele foi chamando as pessoas, uma por uma, falando que era para parar de rezar para ele ficar, que era a sua hora... Mas não foi neste dia ainda, de São José, e ele até teve uma melhora. Passou alguns dias ele recolhido, como sempre bem lúcido em todos estes tempos, comunicando as suas últimas diretrizes e mensagens de Luz.

Chegou o dia de Sábado, ele olhou para a luz do dia e falou: - "Que dia bonito, eu quero ir é hoje!...", e estava dando um céu azul especial, bonito mesmo. Ele ficou olhando o tempo todo pela janela. Chegou uma pessoa próxima, se atuou, começou a cantar, e ele começou a cantar também os seus hinos. Cantou o "Caboclo Guerreiro"(2) , e ele foi assim mesmo, cantando com força e com fé, na sua passagem de Mestre (se fala que na mesma hora alguém soltou um foguete na vila...). Esta é digna de ser comparada às passagens dos Mestres orientais, que desencarnam de forma consciente, em "sámadhi", ou êxtase místico... sendo no caso do Daime, este mesmo "sámadhi" alcançado através dos hinos. Esta passagem é própria também dos "homens de poder", como os anciãos, os velhos xamãs das tribos norte-americanas, por exemplo, os quais sabem e podem escolher o melhor dia para atender o chamado do "mundo dos espíritos".

Este nobre homem nasceu o dia de São Miguel, em 1911, e desencarnou num Sábado, dia também de São Miguel na semana, o dia 23 de Março, dentro do período da Quaresma. "

 

Notas:

(1) Fotógrafo de nacionalidade franco-brasileira, nos anos 80 foi importante ativista do "Flor das Águas", núcleo de produção de ervas medicinais da igreja do Céu da Montanha, com um trabalho fortemente identificado com o movimento conhecido como "umbandaime". A partir de 1992 transferiu-se para o Acre onde passou a participar do centro da Madrinha Francisca Gabriel no bairro da Isaura Parente, em Rio Branco. A Revista da Flor das Águas, sobre Ayahuasca e Natureza foi editada e produzida por ele de modo totalmente independente, constando infelizmente de apenas duas edições (atualmente esgotadas). Atualmente Yan reside novamente na França.

(2) Para conhecer o hinário "Caboclo Guerreiro", que reúne hinos ofertados ao Padrinho Corrente, visite o link: http://www.daime.org/site/pages/mcorrente/cor24set-PT.htm


Publicado em: 31/08/2008

Autor: Antoine Yan Monory

Fonte: Revista Arca da União



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