A Reinvenção do Uso da Ayahuasca nos Centro Urbanos
O que "A Reinvenção do Uso da Ayahuasca nos Centros Urbanos" de Bia Labate traz para as pesquisas sobre a nossa comunicação com as plantas de poder?
Primeiramente em termos paradigmáticos o livro mostra que a pesquisa sobre as ditas culturas não-letradas é um campo novo para os pesquisadores, principalmente para aqueles que desejam ver resolvidas problemáticas centradas nos fenômenos da endogenia, da reificação e da ausência de cidadania na comunicação social do homem moderno - e a esse algo que surge diferente que estamos chamando de homem pós-moderno. Quem foram os mestres que buscaram o sagrado como Irineu e Gabriel? Infelizmente não podemos equipará-los aos neo-xamãs. Uma coisa é assumir a pós-modernidade como uma Nova Era, como práxis, e outra – bem diferente - é utilizá-la como bandeira de uma Nova Era subjetiva e surda aos problemas das exclusões morais, simbólicas e sociais.
E nesse ponto lembramos aqui Lucien Goldmann reiterando suas teses quanto aos aspectos confusos da visão de mundo precedida pelo sufixo neo. O neo-xamã é um neo-kantista: tem os seus "a prioris", está seguro deles, e se esforça para estar sempre aprendendo. Mas continua fora da práxis. Por isso não está vendo tudo, conforme a leitura do livro nos leva a constatar. Por isso não abarca o conceito de práxis porque práxis não é aquilo que julgamos ser moral e factível, mas aquilo que se faz em função do que se pensa e o que se pensa em função do que se imagina; das conotações; dos arranjos que fazemos com os nomes e as coisas e isso só pode ser abarcado em termos isotópicos: universal, particular e o específico.
A importância da obra está em que coloca uma pergunta para a comunidade científica: quais são as causas epistemológicas pelos quais as pesquisas sobre a comunicação social em rituais com as plantas de poder não são percebidas como estruturas-significativas? Por que será que a grande maioria dos pesquisadores, e até mesmo o campo da História, não percebe que a espécie humana sempre criou alternativa ritualística com plantas visando alterar a consciência ordinária? Por que não é instigante tentar responder com critérios da razão as causas mais profundas e soteriológicas da nossa submissão a um mundo completamente fora do eixo sagrado? Então pensamos que justamente aí está mais um ponto de interesse para os pesquisadores da comunicação humana. Podemos alterar nossos apriorismos e entrar no mundo desses estudantes de xamanismo mágico com outras suposições, atitudes e expectativas, e isso a leitura do livro permite: amplia nossos horizontes sobre o valor moral e modos de ocupação do espaço e de uso do meio-ambiente dessas culturas que podemos chamar de arcaicas, ou pré-socráticas, ou ágrafas, essa coisa que também podemos chamar de magia e xamanismo como forma de comunicar atos e fatos do dia com algo que apenas aparentemente é transcendente, algo que na realidade está dentro e fora de nós, um vaso comunicante, um holos.
Podemos ver assim que o holos - a capacidade de entrar para dentro de nós mesmo é equivalente aquilo que pode nos perpetuar, já que somos seres profanos somos também seres sagrados, apenas esquecemos e deixamos de ser a partir da supremacia da hegemonia dos imaginários monoteístas. O cristianismo,convém lembrar, não foi um movimento monoteísta em sua essência, e nisso contrasta com o Catolicismo. O livro também permite vermos melhor essas questões históricas que ainda tanto incomodam quando confundimos ações isoladas sagradas, com signagens religiosas da polis.
Além de história emocionante sobre o que o homem moderno constrói em termos da narrativa do mithós produzida por seu imaginário sincrético, ora sagrado, ora profano e seus signos replicantes, o livro é fruto de uma longa e competente pesquisa de campo sobre algumas tribos urbanas que se autodenominam neo-xamãs.
Mas pelo que entendemos são estudantes de xamanismo. Para ser xamã é preciso alcançar graus de avatarização, e pelo que sabemos isso só aconteceu naquele raro período da década que vai de 1920-30 até 1970 com alguns seguidores dos Mestres Irineu e Gabriel, tais como Sebastião Mota de Melo, Daniel Pereira de Mattos, em correntes como a Barquinha, e alguns outros poucos e raros, como a Madrinha Baixinha, para citar apenas uma dos que se aproximaram do nosso brasileiro tão saudado e saudoso Padrinho Sebastião Mota de Melo.
São poucos aqueles alunos realmente modelares. Mas esse quadro vem mudando. Surgem grupos aqui e ali mais atenciosos, mais humildes, sabedores que para as lógicas da magia o tempo é uma categoria enquanto que o espaço é eterno, um holograma com diversos tempos, finito porque gira em círculos, mas infinito devido mesmo a sua natureza hologramática.
O livro revela visões de mundo que não deixam dúvida dos equívocos epistemológicos cometidos pela grande maioria dos líderes desses grupos que auto-intitulam-se neo-xamãs, deixando bem claro que estamos excluindo os grupos realmente encabeçados por xamãs, por homens ou mulheres que estão atingindo graus de avatarização como os padrinhos e madrinhas do CEFLURIS; da Comunidade do Matutu; do Céu do Mar, da Rainha do Mar, do Céu de Maria, Céu da Montanha e da sinceridade da busca do grupo Lua Cheia, Caminho de Luz e Brilho do Sol; e outros poucos anônimos, além é claro, do pessoal de raiz, como do Alto Santo; do Padrinho Luiz Mendes; Barquinha e aqueles da UDV autênticos seguidores da viúva dona Pequenina.
A pesquisa de Labate em forma de livro contribui também para o campo da comunicação, no momento em que a autora faz uma crítica à intolerância com o diferente. Endossamos o prefácio da editora lembrando que a autora nos faz notar que “a diversidade de práticas do campo ayahuasqueiro não implica em desordem, mas ao contrário, gera formas de controle próprias a este universo religioso”.
Bia Labate é cuidadosa, é aguda o tempo todo, e a obra tem um profundo valor literário porque ela sabe escrever em linguagem densa e hipertextual, sabe usar as notas de rodapé com naturalidade, e proporciona uma leitura que é ao mesmo tempo enciclopédica e pontual sobre esse fenômeno que está provocando uma mudança cultural, revisões de leis e paradigmas internacionais sobre consumo de plantas que antes eram estigmatizadas sob o rótulo ingênuo de “alucinógenas”. A história está mostrando que o rótulo é na verdade um comportamento endógeno,provoca uma exclusão moral de culturas sedimentadas a milhares de anos, mas que sofrem perseguição moral da hegemonia desenvolvimentista - há mais de 500 anos. As pesquisas estão mostrando quadros sociais de memória e lembrança daquilo que pode resgatar em nós um novo modelo de homem, não profano porque o sagrado para essas culturas não está dissociado do cotidiano mundano. Tudo demonstra que Deus existe, está dentro de nós, e nos conhecimentos dos velhos xamãs contém chaves para abrirmos os portais, os vasos comunicantes para essa realidade.
Labate faz um percurso e aprofunda essas questões mostrando conhecimentos que constituem uma alternativa ao modelo desenvolvimentista: Stanislav Grof e seu sistema de cura a partir da respiração holotrópica; a Bioenergética do venerável W. Reich em Alexander Loern (psiquiatra) transforma-se num sistema de cura através da liberação das emoções com choros, gritos e chutes. E é interessante sob o ponto de vista metodológico ver como a autora não esquece de situar tudo isso dentro de um contexto maior que é o contexto dos grandes gurus que atingiram altos graus de avatarização como Gurdjieff; Osho e Timothy Leary.
O enredo apresenta uma introdução onde a autora esclarece suas metodologias remetendo o leitor aos estudos de métodos e técnicas da antropologia cultural e da etnografia e é interessante como a leitura promove a formação de corredores isotópicos com o método da reportagem e das técnicas de captação de dados do Jornalismo. Vale a leitura porque passamos a confrontar mais as diferenças e semelhanças entre áreas de conhecimento que parecem irmãs ou co-irmãs, mas que estão tão distantes.
O foco da pesquisadora está no que denomina “as religiões ayahuasqueiras brasileiras”. No primeiro capítulo mostra um estudo de caso realizado com um grupo de um Centro Terapêutico alicerçado em cosmologias com origens no yôga. Logo – numa nota de rodapé a autora divulga informações básicas sobre o paradigma da yôga: um exercício que nos ensina a “arriar o cavalo em uma biga”. E aí a narrativa é instigante porque revela as lógicas de uma cultura completamente diferente dos paradigmas ocidentais, com paradigmas válidos, lógicos e profundos, permitindo uma ampliação dos nossos horizontes-limites epistemológicos.
No segundo capítulo um novo estudo de caso mostra o grupo neo-xamã, “O caminho do coração” com raízes teóricas de Osho. Esses dois estudos são aprofundados no terceiro capítulo quando então a autora oferece uma leitura das cosmologias dos grupos. O quarto capítulo oferece um panorama de outras formações ayahuasqueiras urbanas.
A leitura mostrou-nos a fragilidade dos neo-xamãs. Alguns equívocos dos atores sociais agnósticos que buscam um uso fora do eixo do sagrado. É muito triste ver que a grande maioria não entende as palavras deixadas pelo Mestre Irineu e seus principais seguidores. Não entendem, com raras exceções, como citamos anteriormente, as mensagens deixadas por Mestre Gabriel e Mestre Irineu.
Quem são os neo-xamãs? Pessoas interessadas em qualidade de vida; pessoas que acreditam que a natureza é um santuário divino de Deus; pessoas que buscam um equilíbrio entre ações sagradas e profanas e aqueles que buscam o autoconhecimento; uma metapsicanálise.
Isso deixa – contraditoriamente - a leitura mais emocionante. Sentimos os ventos trazendo uma mudança de mentalidade, pelo menos em termos de campi universitários. A pesquisadora autora é sensível, transita com elegância acadêmica e nas entrelinhas ensina métodos e técnicas de coleta de dados. Obra excelente para pesquisas em comunicação de massa e jornalismo.
Aprendemos que antes de ler é preciso eleger – assim, entramos na leitura do livro com alguns problemas que até o final somos relevando, problemas esses centrados no corpus e o foco que a autora faz a partir de uma equivalência entre xamanismo e religião. Infelizmente o enquadramento, para nós, está desfocado, pois não podemos generalizar e dizer que xamanismo e religião sejam a mesma coisa, e a autora generaliza quando de certa forma endossa o uso da expressão neo-xamã. Por tabela, acaba tratando xamanismo e religião como sistemas idênticos. Os xamanismos, conforme os historiadores das religiões, são técnicas arcaicas de êxtase e geração de epifanias que nos remete a uma distância cultural bastante grande dos sistemas monoteístas. Xamanismo é magia, é pensamento mágico; religião é intenção de re-ligação; é pensamento lógico. Infelizmente faltam pesquisas que façam um resgate historicizado do que foi realmente o movimento iniciado pelos Mestres Irineu, Gabriel. Eles não re-inventaram e nem re-criaram. Eles lembraram uma história de amor e piedade que foi, é, e sempre será porque está entre nós e dentro de nós, mas estavam esquecidas. Eles - com ajuda de suas porções divinais e suas sabedorias musicadas – mostram algo que esquecemos: o amor universal; a unicidade na diversidade; e que harmonia não é todos fazendo igual, mas todos unidos em nome da paz. Os mestres Irineu e Gabriel são os barqueiros da arca da aliança que está construindo a Nova Jerusalém na Terra, sendo o mistério da Nova Jerusalém uma figura arquetípica que lembra o homem sagrado que está dentro de nós.
O xamanismo é uma comunicação completamente diferente em termos paradigmático daquilo que conceituamos historicamente como arquetípico da religião, e a autora ao abordar o Santo Daime do Mestre Irineu e seguidores próximos, fazendo equivalência com as práticas dos seguidores que usam da doutrina do Santo Daime fora do contexto dos primeiros Mestres mistura dois sistemas fazendo tábula rasa de suas diferenças.
Na realidade xamanismo é uma coisa, religião é outra.
Enfim, são alguns pontos que levantamos aqui para dialogarmos com nossos pesquisadores no sentido de prestarmos mais atenção a essa nova onda que vem forte, e está abraçando o mundo inteiro, curando, tirando jovens das perversões; trazendo harmonia e alegria para muitas famílias que se viam antes em conflitos e envolvidas com a violência urbana. A realidade é mágica como nos ensinam os dialéticos: luz e escuridão caminham juntas por isso o nosso porto é, e deve ser um sombreiro; o caminho do meio como ensinam as plantas professoras.
Notas: (*) Jussara Rezende Araújo obteve o doutorado em Ciências da Comunicação na ECA/USP. É pesquisadora, jornalista profissional e professora na pós-Graduação Mestrado em Comunicação da Universidade de Marília e também no curso de Jornalismo.
Publicado em: 12/08/2008
Autor: Jussara Rezende Araújo
Fonte: Revista Arca da União
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