Artigo de Dr. Josep Maria Fericgla



A Relação entre a Música e o Transe Extático

 

 Nosso grande filósofo Bertrand Russell amiúde apontava que um dos erros mais freqüentes na prática científica consiste em mesclar duas linguagens que, para o bem de todos, deveriam manter-se estritamente separadas. Mais tarde, o renovador da antropologia e um dos pais das modernas teorias da comunicação, Gregory Bateson, insistiu no mesmo. E ainda mais recentemente, foi Paul Watzlawick que bateu na mesma tecla a partir de outro ponto de vista. Concretamente, é imprescindível diferenciar entre: a) a linguagem que faz referência aos objetos; e b) aquela que se refere às relações entre os objetos (WATZLAWICK, 1995:32). Um exemplo extraído do tema que nos ocupa aqui: se digo "esta música é lírica" ou "este ritmo é rápido", designei alguma qualidade da música na linguagem dos objetos. Mas se, pelo contrário, digo: "aquela música é melhor que esta para o transe extático", então estou fazendo uma declaração sobre relações que deixa de ser reduzível a uma ou outra música. Apesar de nossa incipiente compreensão —especialmente em ciências humanas— da natureza das propriedades das relações, podemos dar-nos conta do rudimentar de nossos conhecimentos neste sentido e de que, amiúde, isso nos cria mais enigmas e desconcerto que esclarecimentos, mas também devemos reconhecer o grande campo de compreensão que se abre a partir disto. Tratarei, pois, de não cair neste erro de categorias lógicas do conhecimento ao longo da exposição que se segue, discernindo com a máxima clareza quando faço uma afirmação sobre os objetos (a música ou o transe) ou sobre a relação que há entre eles.

Para apreender o vínculo existente entre a música —no momento genericamente— e os estados de transe extático comecemos por esclarecer que em tudo isso tem, naturalmente, mais peso a dimensão relações que a dimensão objetos, já que o básico não é que exista uma música poderosa, alegre ou grave, mas sim que existem sistemas musicais que estão relacionados de uma ou outra forma com esta capacidade afetivo-cognitiva do ser humano. Assim, e como veremos mais adiante, falar de um sistema musical extático não implica em falar de um objeto musical específico, de uma escala de preferências estéticas ou de uma estrutura sonora única, mas sim que o estado de transe se acha totalmente relacionado com: a) o estilo cultural dominante; b) com certos treinamentos individuais ou o que Richard Noll chama "o cultivo do imaginário mental" (NOLL, 1985); c) com certas predisposições inatas individuais; e d) também com determinadas estruturas sonoras físicas, que parecem ter alguma função em tais experiências extáticas.

Feita esta preliminar, vamos começar por levantar, na linguagem dos objetos, os termos centrais sobre os quais trabalharemos: que é o transe? é o mesmo que o êxtase? se trata de um fenômeno religioso e, portanto, cultural? é de caráter basicamente fisiológico? que é a música? e finalmente: que relação existe entre ambos fenômenos que tão amiúde parece não existir um sem o outro?

Em geral estas questões acabam sendo universais porque se referem à constante busca humana por uma realidade com maior sentido e transcendência. O motivo de tal amplitude de marcos de interesse radica principalmente na grande dificuldade de aceder à forma de atuação da música e à essência dos estados cognitivos alternativos (o transe), o que exige do antropólogo usar todos seus recursos de campo e mais, muito mais, já que neste objeto de estudo se evoca uma dimensão integradora do fenômeno humano, uma dimensão prática e simbólica, uma dimensão psicológica e outra fisiológica, e por sua vez o pesquisador se encontra com o fato de nosso objeto de análise de agora desafiar todos os sistemas explicativos e interpretativos clássicos, se abrindo a uma transdisciplinaridade e a um dialogismo difíceis de classificar.

Neste sentido, cabe também destacar outros elementos constitutivos da própria práxis extática que por sua complexidade escapam inclusive a um texto antropológico, tais como o caráter pré-lógico do processo cognitivo que se desenvolve nos estados de transe, um certo treinamento em direção do que chamaríamos a onipotência do pensamento infantil, a inefável experiência plena de beatitude e beleza que acompanha o transe extático e que, em certa forma, é sua própria essência; inclusive o limite hermenêutico de que sim a teoria é capaz de dar-nos um modelo válido e compreensível desta realidade humana, tendo em conta sua bivalência subjetiva e objetivável só em certa medida.

Assim portanto é que vou adentrar na definição de cada um desses dois parâmetros cuja relação é nosso objeto de reflexão e análise neste texto. Isso nos ajudará a centrar o fenômeno extático e musical em seu devido lugar, tratando de evitar que, como costuma suceder, ao lado do claramente misterioso ou ainda informulável da natureza humana se misturem anseios, inexatidões e desejos pessoais sem relação alguma com o resultado dos dados e conclusões a realizar.



I.


Por transe extático vou referir-me, em primeiro lugar, ao que foi admitido dentro dos parâmetros da pesquisa psicológica, mais além das puras descrições fenomênicas. Para a psicologia, o transe extático é uma saída do ego fora de seus limites ordinários em razão de nossas pulsões afetivas inatas e mais profundas. Se trata de um estado extraordinário de consciência desperta, determinado pelo sentimento e caracterizado pelo arroubo interior e pela ruptura parcial ou total com o mundo exógeno, dirigindo a consciência desperta —entendida como "capacidade para conhecer"— até as dimensões subjetivas do mundo mental.

Por outro lado, desde o ponto de vista das ciências cognitivas cabe distinguir entre transe e êxtase, no sentido de que transe significaria um processo cognitivo, literalmente de trânsito, e que êxtase viria referir-se a um estado cognitivo (ainda não está totalmente estabelecida a diferença entre o que é um "estado mental" e o que é um "processo mental", mas não obstante existe diferença, e há pesquisadores dedicados a isso, por exemplo ANDLER, 1992:9-46); de modo que a expressão completa mais adequada seria a de "transe extático" já que assim se indica um processo mental que acaba desembocando em um estado cognitivo alternativo, cujas características uma delas é a de apresentar uma certa estabilidade. Esta forma de consciência extraordinária foi e é vivida pelo ser humano como máxima manifestação da união com sua divindade ou com o mundo animista culturalmente definido. São conhecidos e foram bem descritos pela história das religiões comparadas, por exemplo, os estados de êxtase dos berserkers, aqueles temíveis guerreiros que povoam a mitologia escandinava; também o foram as celebrações extáticas das bacantes e mênades dionisíacas, assim como os estados de arroubo passional que despertava a música do fauno Marsias. Graças à etnografia foram estudados ao vivo os estados de transe extático dos atuais dervixes sufis giróvagos de Konya, dos xamãs ameríndios e siberianos, dos iogues da Índia, etc. e agora aparece um interesse especial por estudar as novas religiões sincréticas e extáticas americanas (o Santo Daime de origem brasileira, a Igreja Nativa Norte-americana com raízes nos cultos indígenas consumidores de peiote) e africanas (especialmente o Buiti), nas quais a música atua um papel central (FERICGLA, 1994 e 1997).

Desde o ponto de vista antropológico acredito não equivocar-me se me refiro a estes estados de transe extático no sentido de que, tanto o xamã ameríndio ou siberiano especialista em transitar por tais processos e estados cognitivos alternativos, como o místico cristão que o vive em forma de máxima união amorosa com a divindade se movem dentro de uma ordem sistêmica de relações sócio-culturais que dão sentido, conteúdo e eficácia aos valores que eles usam para ordenar tanto a realidade sobrenatural como a natural, tentando a partir do transe extático criar novas possibilidades e linhas de adaptação por meio da compreensão e manipulação do imaginário mental (auditivo, visual, táctil ou afetivo) gerada a partir de tais estados de dissociação mental; estados que, apesar da dor inicial que produzem, o xamã ou místico busca e domina. Neste sentido portanto, o especialista em mover-se dentro destes estados mentais alternativos é quem cumpre exemplarmente com a função que chamei adaptógena (ibid, 1993:167-183) graças a sua treinada capacidade para decodificar "aquilo" que o ritmo musical lhe ajuda controlar. Tudo isso, ademais, sucede dentro de um contexto ritual que a maior parte das vezes inclui o consumo de substâncias enteógenas [2] (psicotrópicas) ou a prática de técnicas de respiração muito específicas que provocam uma hipoxia cerebral y que vêm reguladas justamente pela música que o sujeito extático canta ou baila. Por isso, e sob o anteparo conceitual que nos oferece a antropologia, prefiro chamar a tais estados de transe como processos e estados cognitivos dialógicos, no sentido de que a consciência humana parece ser capaz de discernir cada um dos personagens que levamos em nossa psique, e observar a relação que se dá entre eles, seja projetando-os fora do âmbito subjetivo em forma de entidades espirituais referendadas pela cultura —como seria o caso do êxtase xamânico ou das religiões daimistas—, ou então vivenciando-o em forma de possessão —o caso dos cultos afro-brasileiros e afro-caribenhos— ou de unidade mística com a divindade do mundo cristão. Assim, a denominação antropológica completa do transe extático seria a de processos cognitivos dialógicos com uma função adaptógena inespecífica que age por meio do imaginário mental culturalmente decodificado.

Por outro lado e desde o ponto de vista fisiológico, o transe extático se caracteriza por uma aparente diminuição da percepção e da sensibilidade corporal dirigidas ao mundo exógeno, e por uma queda da mobilidade corporal. Ademais, também pode afirmar-se que se trata de uma capacidade biologicamente dada já que não existe uma só sociedade que em maior ou menor grau, e sob a epígrafe cultural que seja, não conheça tais estados extáticos e não disponha de algum tipo de aprendizagem regulada como caminho para cultivar esta capacidade inata: samadhi entre os budistas, wäjd ou jushúa entre os árabes magrebes, êxtase teresiano no mundo europeu clássico, nembutsu no Japão, transe xamânico na Sibéria e em toda América e um longo etcétera.

II. 


Uma vez definido um dos elementos do par cuja relação vamos estudar, o transe extático, nos toca precisar o segundo deles na linguagem dos objetos: a música. Tampouco aqui me interessa debruçar-me em barrocos debates conceituais e teóricos —no fundo, quase sempre me parecem demasiado acadêmicas— sobre o que é música e o que não é. Por isso, vou ater-me à definição já clássica de música entendida como som organizado com uma ordem imposta pelo ser humano de acordo com suas contingências históricas e cognitivas, e cujo conteúdo é entendido pela coletividade que a compõe, a interpreta e a mantém viva.

Desde o ponto de vista biológico, se pode afirmar que o feito musical é também algo inato no ser humano, no sentido de que ainda que não se achou nenhum "neuro-transmissor musical", não existe uma só cultura nem uma só coletividade humana que careça de música. Além disso, os trabalhos derivados de pesquisas atuais puseram em relevo que muito provavelmente existe uma zona operacional do cérebro encarregada da produção e da recepção musical, e que não é a mesma que se encarrega da elaboração da linguagem falada.

Em terceiro lugar e desde o ponto de vista da antropologia, não há dúvida alguma que o principal elemento cultural relacionado com a música é a religião e dentro dela a busca de estados extáticos e de arrebatamentos emocionais. E isto se pode afirmar tanto em referência à música xamânica, como aos cantos gregorianos medievais, à moderna música disco explicitamente chamada "trance music" ou às denominadas "músicas da nova era", de caráter muito mais elaborado, refinado e dirigido para esta finalidade. Daí que no mercado atual se ofereçam tantos títulos de gravações recentes com uma clara alusão ao êxtase — Em transe, de Conrad Praetzel, The Feeling begins de Peter Gabriel, From the Heart of Darkness e Desert Solitaire de S. Roach, K. Braheny e M. Stearns, Les maîtres du guembrí do grupo gnaua Al Sur-Karonte, etc.— e que, mesclado com isso muito amiúde apareçam gravações de músicas tradicionalmente usadas para dirigir experiências religiosas de caráter extático como os cantos dos Lamas tibetanos, os cantos gregorianos mais elevados e as músicas xamânicas orientais (dois exemplos atuais e exitosos disso são O canto do Lama, gravação conjunta do lama tibetano Gyourme e do músico ocidental Jean-Philippe Rykiel; e Officium, edição de música sacra ocidental realizada pelo saxofonista Jan Garbarek e The Hilliard Ensemble).

Outra qualidade a levar em conta para entender globalmente a relação entre ambas realidades cognitivas, a música e o transe extático, se refere à capacidade essencial de codificação e modificação temporal que a música possui. Neste sentido, durante a experiência de modificação do estado de consciência cotidiano que se busca através do transe, há uma mudança profunda da vivência do tempo: a vida ordinária transcorre em um mundo entendido e vivido sob um tempo que podemos chamar cotidiano, cuja principal característica é que está pontuado e dominado por elementos exógenos —sejam máquinas, sejam horários combinados ou uma mudança sazonal—, desde que a qualidade essencial da música é o poder que tem para criar outro mundo baseado em um tempo virtual. Recordando o que escreveu Stravinski: "a música nos é dada com o único propósito de estabelecer uma ordem nas coisas, incluindo de maneira particular a coordenação entre o ser humano e o tempo". A música é criação de tempo com parâmetros totalmente subjetivos, daí a abismal diferença que existe entre "deixar-se banhar" pelo concerto para trompa de Mozart dirigido pelo impetuoso A. von Karajan ou pelo lírico e delicado Sir Georg Solti. As notas que lerão os músicos podem ser as mesmas, mas o tempo virtual que gerará cada uma destas interpretações será bem diverso.

Finalmente, também cabe acrescentar que se tanto interesse desperta atualmente toda pesquisa sobre o xamanismo clássico e as consciências alternativas, isto se deve a que, em termos gerais, esta se situa em um âmbito de vivências provavelmente comum a toda a humanidade. Se tratam de técnicas que, segundo muitos pesquisadores entre os quais me incluo, favorecem o contato direto com o que chamamos sobrenatural, o númico, com o escuro mistério que acaba arrastando consigo o ser humano e de onde se pode tirar alguma idéia sobre seu próprio lugar no mundo, em nível individual e social, e ao mesmo tempo tudo isso se projeta em estratégias concretas que facilitam a adaptação ativa do sujeito às mudanças que se produzem em seu entorno ou que ele mesmo gera. Neste sentido, as práticas extáticas se resolvem habitualmente como fonte de revelação interior em resposta às grandes interrogantes pragmáticos (a origem do ser humano, a causa da doença e da dor, qual será o porvir) através do que chamei estados dialógicos da mente, sejam induzidos pelo consumo de poções enteógenas, por transes rítmicos, por ambos estímulos combinados (como costuma acontecer) ou por causas de outra origem.

III.



Uma vez definidos os limites de nosso duplo objeto, vamos dissecar a relação que existe entre ambos fatores.

A relação entre a música e o transe extático é um dos fenômenos mais variáveis e contraditórios que se pode observar. Não parece existir nem um único padrão fixo por nenhum de ambos lados, apenas existe a relação. E ainda sobre isso, e em boa lei científica, deverá recair a dúvida sistemática já que se fala também de transes extáticos que se conseguem sem música de nenhum tipo (como a famosa liberação de Buda ou a iluminação de Jesus Cristo no deserto), o qual põe inclusive em suspenso a real existência de uma relação entre ambos fatores para obter o fim extático, que não seja simples coincidência. Façamos um rápido repasse ao tema.

Se observam-se e analisam-se os instrumentos usados para induzir ao êxtase não se encontra nenhum tipo de generalidade aceitável: às vezes se trata de grandes e retumbantes tambores os quais parecem ser essenciais para o transe (como entre diversos povos africanos sub-saarianos), mas outras vezes o instrumento se reduz a apenas um maço de folhas atadas e sacudidas seguindo um ritmo variável que o executante impõe sem maiores acordos sociais (como no caso do transe xamânico de povos amazônicos como os shuar e achuara, mais conhecidos como família lingüística jivaroana ou Nação Jívaro). Há ocasiões nas quais os instrumentos, sejam de percussão, melódicos ou ambos, são a base da música e qualquer voz humana resulta um estorvo (como entre os dervixes giróvagos e sua música sufi), enquanto que outras vezes é a própria voz humana a que protagoniza ou dirige o transe sem ajuda de nenhum instrumento (como é o caso dos cantos dos lamas tibetanos, e de diversos povos balineses que entoam o famoso Canto do Macaco, Ketjak). Existem povos que buscam ao êxtase de forma apolínea, bailando formal e ordenadamente com um perfeito controle corporal (como no caso dos Zuni estudados por R. Benedict); em outros casos se trata de um baile dionisíaco no qual a finalidade é justamente perder o controle dos movimentos automáticos do corpo (como em diversos ritos afro-caribenhos e afro-brasileiros); e ainda em outros casos o sujeito extático acha sua experiência no fundo de uma solitária e silenciosa gruta, sem mexer nem um só músculo durante longas horas. Em alguns povos parece imprescindível o consumo de psicotrópicos para obter a experiência buscada (segundo E. Bourguignon, este uso de substâncias enteógenas se dá em 89% das sociedades estudadas pela etnografia), ao passo que outros povos dizem limitar-se ao uso da música como meio indutor.

Esta diferença, o uso ou não de psicotrópicos como elemento catártico que acompanha a música no caminho de busca do transe extático, conduziu R. Benedict a falar de "culturas dionisíacas" e "culturas apolíneas", justamente a partir desta única diferença essencial (ver BENEDICT, 1934, y BATESON, 1993; 39 e nota 4). Ainda que represente um pequeno desvio a respeito do objeto que nos ocupa, vale a pena falar aqui um pouco mais dos trabalhos de Benedict sobre o tema. Esta antropóloga clássica se interessou por descobrir o padrão cultural dominante em cada sociedade a partir dos tipos de personalidade dominante, e, entre outras variáveis, atentou no fator "busca do transe" como elemento alavanca na formação das personalidades individuais. R. Benedict recebeu a influência da escola de historiadores de Dilthey e Spengler, e tratou de aplicar a dicotomia nietzschiana (apesar de não seguir literalmente a proposta de F. Nietzsche) entre apolíneos e dionisíacos ao contraste existente entre os Zuni, uma etnia apolínea altamente formal pertencente ao Povo do sudoeste, e dois grupos indígenas também norte-americanos, mas violentamente dionisíacos: os índios das planícies e os Penitentes mexicanos. Benedict conseguiu demonstrar que os indios das planícies e os Penitentes mexicanos dedicavam um valor cultural muito alto a várias formas de excitação extática. Os índios das planícies alcançavam a experiência mística por meio de severas auto-torturas que induziam a um estado de hipoxia cerebral e também por meio do consumo de peiote, o famoso cacto psicotrópico, mas, diferentemente, a música não parecia atuar um papel demasiado importante. Em sentido contrário, entre os Zuni se desconheciam genericamente tais práticas violentas, e o transe extático se obtinha por meio de sua dança sagrada, dominada pela exatidão de uma pauta bem regrada. Assim, e à margem de seu interesse pela busca de padrões culturais coerentes com o tipo de personalidade dominante, Benedict mostrou como cada uma destas etnias tinha se especializado coerentemente em tais formas particulares de expressão em todos seus setores e instituições culturais a partir da forma de aceder ao estado extático: fosse por meio de enteógenos no caso dos dionisíacos índios das planícies e dos Penitentes, fosse por meio de uma dança altamente formalizada no caso dos apolíneos Zuni.

A grande pergunta a formular, portanto, pode ser tão simples como: se trata de uma relação fisiológica (vibrações sonoras, empatia de ritmos endógenos e exógenos, estimulação de alguma desconhecida parte do Sistema Nervoso Central (ou do cérebro diretamente...)? ou será que se trata de puro treinamento cultural? Estas interrogantes, formuladas aproximadamente nestes mesmos termos disjuntivos, têm sido já propostas amiúde durante a história da humanidade. Platão atribuía o estado de transe extático a um efeito diretamente associado ao som do aulos (o famoso instrumento de dupla embocadura, predecessor do atual oboé), enquanto que Aristóteles o atribuía ao modo musical frígio (o primeiro estilo antigo da música grega clássica, que consistia em uma escala descendente que começava e acabava em ré e que se apreciava por produzir uma exaltação paroxística antes dos ataques guerreiros). Ou seja, enquanto que o primeiro o atribuía a uma causa física, o segundo apostava em uma causa cultural. Passam os tempos, é muito provável que o tema se seguisse discutindo e no século XII encontramos ao árabe Ghazzâlî que tentou demonstrar que a causa final do transe extático radica na própria física do som, e para isso usava como argumento o caso dos pastores de dromedários que, dizem, com seus cânticos conseguiam adormecer seus animais de corcova única (citado por ROUGET, 1980). Seguiram passando os séculos e a pergunta em questão seguia aberta e sendo alvo de interesse de diversos pensadores e filósofos. Durante a época do Renascimento, os poetas e músicos da Plêiade [3] afirmavam com total segurança que a causa que produzia os desejados efeitos extáticos era a união de música e poesia, com o qual se acercaram basicamente às propostas atuais no sentido de uma explicação de caráter sistêmico. Mais adiante foi o pensador e escritor J.J. Rousseau quem se pronunciou categoricamente contra o poder dos sons (depois de medita-lo longamente, segundo assinala G. Rouget). Passam os séculos e na década de mil novecentos e sessenta, o pesquisador norte-americano em neurofisiologia Andrew Neher afirma haver demonstrado exatamente o contrário; ou seja, que a causa real da relação que aparece universalmente entre a música e o transe extático seria de caráter neurofisiológico, portanto de novo uma causa física. A. Neher afirma como conclusão de seus trabalhos que a estimulação rítmica afeta diretamente a atividade bioelétrica de: "muitas zonas sensórias e motoras do cérebro, zonas que não estão normalmente afetadas devido a suas conexões com a zona sensorial que é estimulada" (NEHER, 1962;153) e que isso é possível, segundo ele, porque os receptores auditivos de baixa freqüência são mais resistentes aos danos que os delicados receptores de alta freqüência (ibid., 1961; 449-451). Esta explicação e trabalhos têm sido amiúde recorridos por outros autores mais humanísticos como "prova" de suas teses; não obstante, tal afirmação de Neher tem, provavelmente, parte de verdade —e apenas parte— já que outros trabalhos experimentais apóiam parcialmente esta proposta causal, ainda que nenhum deles exclui que existam outras explicações mais integradoras do fenômeno como, de fato, necessariamente existem. Neste sentido, Wolfgang Jilek, o conhecido etnopsiquiatra residente no Canadá, descreveu como no som dos tambores de pele de cervo que usam os salish em seus ritos iniciáticos e extáticos, dominam as freqüências baixas de 4 a 7 ondas por segundo (JILEK, 1974;74-75), que é a mesma freqüência das chamadas ondas theta ( z ) nos eletro-encefalogramas (EEG). A partir de meus próprios trabalhos de campo verifiquei que, efetivamente, sob o efeito da substância visionária ayahuasca, de extensíssimo uso nos povos indígenas da Alta Amazônia para indução de estados extáticos com fins xamânicos, as ondas bioelétricas que mais ativadas se observam no cérebro a partir de registros de EEG são as theta (FERICGLA 1997). Apesar de tudo isso, o extenso uso de tímpanos e de outros instrumentos que produzem sons médios e agudos com as mesmas finalidades extáticas em outras culturas, contradiz e põe em evidência a, como mínimo parcial, falsidade da anterior afirmação: as ondas de baixa freqüência podem ter alguma relação física com os trânsitos extáticos, mas não podem ser o motivo.

Por outro lado, o antropólogo M. J. Herskovits defendeu uma explicação cultural para os transes extáticos. Herskovits propôs a hipótese dos reflexos condicionados pelo processo de enculturação como causa última. Neste sentido e desde o ponto de vista da pesquisa científica, parece suspeito que os pesquisadores do âmbito da biologia defendam causas biológicas enquanto que os científicos do lado das humanidades o façam puxando a água para seu moinho disciplinar, e que ambas famílias de cientistas encontrem argumentos para defender suas posições. Tal paradoxo deveria, de entrada, animar a dirigir a atenção para algum novo tipo de paradigmas explicativos de caráter mais holístico.

Outro exemplo disso o temos no antropólogo francês R. Bastide, que anos mais tarde recebeu a tocha de seu predecessor, levando-a a terrenos menos comprometidos e mais gerais ao afirmar que a música tem uma especial capacidade para estimular vivências emocionais dentro de uma situação global, de acordo aos valores culturais de cada sujeito, sem definir-se mais que isso. Por outro lado, o também francês Alain Daniélou, a quem G. Rouget qualifica entre aspas "etnomusicólogo de reputação mundial", afirma no número do Correio da UNESCO de outubro de 1975 ("Musiques et dances d’extase") que em todo o mundo se usam ritmos ímpares — de 5, 7 ou de 11 tempos— para induzir os estados de transe extático. A. Daniélou diz que as músicas com ritmos pares —de 4 ou de 8 tempos— não têm a menor capacidade hipnótica. Não é preciso procurar muito nas arcas da etnomusicografia para dar com uma pirâmide de exemplos de campo que contradizem tal afirmação, já que encontramos transes induzidos ou conduzidos por músicas de ritmo binário (por exemplo, a dos grupos jivaroanos ou a maioria dos hinos cantados pelas Igrejas Daimistas), e inclusive com uma métrica muito irregular ou quase indefinível (como é o caso da música xamânica dos innuit).

Outro caso similar é o do antropólogo norte-americano Michael Harner, que baseia suas afirmações em seu próprio trabalho de campo e nas pesquisas de seu compatriota já citado, A. Neher. As propostas e afirmações de M. Harner beiram a piada quando propõe seriamente um método simples para induzir-se um transe xamânico (ou o que ele chama "estado de consciência xamânico", ECC): "O tambor e o maracá são instrumentos básicos para entrar em ECC. O xamã costuma limitar o uso de seu tambor e de seu maracá para evocar e manter-se no ECC, e assim seu inconsciente os associa automaticamente com atividades xamânicas sérias. O som inicial rítmico e monótono do maracá e do tambor (...) é um sinal para que o cérebro volte ao ECC" (HARNER, 1987;83). Em outro fragmento do mesmo livro dá as indicações específicas para adentrar-se no transe xamânico, que consistem em recostar-se comodamente e visualizar mentalmente alguma abertura que o sujeito tenha visto com anterioridade no mundo físico (uma gruta, o tronco oco de alguma árvore, etc.). Então: "peça a seu companheiro que comece a tocar o tambor, alto, a um ritmo rápido e uniforme. Não deve haver ruptura do ritmo nem mudança alguma na intensidade dos toques; de uns 205 a 220 toques por minuto produzem, normalmente, os efeitos desejados. Calcule que tem uns dez minutos para fazer a viagem. Indique a seu companheiro que, transcorridos os dez minutos, deve tocar forte o tambor quatro vezes para avisar-lhe de que é hora de regressar. Imediatamente depois, seu ajudante deve bater o tambor a um ritmo muito rápido durante meio minuto para guiar-lhe na viagem de volta, e acabar com quatro toques secos mais como um sinal de que o experimento terminou." (ibid.;61). M. Harner não explicita em seu texto se o "estado de consciência xamânico" é de caráter extático ou de outro tipo, mas o incluo aqui porque o mais generalizado é referir-se a isso como substituição da expressão transe xamânico, e no mesmo livro este antropólogo norte-americano o dá a entender de diversas formas. Se me alonguei mais neste exemplo é porque se trata de uma boa ilustração de um extremo simplismo analítico, além de responder a certas modas New Age típicas do final do século XX nos EUA e caracterizadas por sua linguagem pseudocientífica. Ou seja, poderia ser considerado outra forma distinta de manifestar-se fenomenicamente o interesse perene da humanidade para com tais experiências subjetivas. No exemplo citado, Harner o expõe com uma linguagem de caráter "científica" (escreve sobre isso como antropólogo, aludindo a pesquisas neurológicas, etc.) e dando um valor ao transe extático carente de todo sentido religioso (seria divertido poder observar a Santa Teresa de Jesus com sua experiência mística resultante do inquestionável amor para com Deus diante da proposta pagã e cheia de pragmatismo de M. Harner).

Poderia alongar-me bastante mais com outros exemplos contrapostos com teorias que propõem a causalidade do êxtase em um ou outro dos elementos que formam o estranho par (música/transe), mas até aqui é os suficiente como ilustração. Falando com rigor analítico, um se dá conta de que a variedade dos fatos é tão extraordinariamente extensa que não admite reducionismos mecanicistas nem uma explicação única. A única certeza possível que suporta qualquer análise, é a de que não há um ritmo nem uma música específica em relação ao transe, e que ademais tampouco existe uma única expressão fenomênica do êxtase.

Sem dúvida, a forma e expressão que adquire uma experiência de transe entre um lama tibetano ou de um monge japonês praticante de za-zen, um seguidor dos ritos africanos de possessão, ou um adolescente europeu que baila durante horas em una discoteca ao ritmo de "trance music" depois de ter ingerido alguns comprimidos de "ecstasy" (e não é apenas metafórico o uso moderno e paganizado destes termos na subcultura juvenil), estas variadas experiências extáticas têm elementos em comum e outros que as apartam.

IV.



Assim, para terminar vou expor uma classificação das diferenças e similaridades que se podem apreciar na relação existente entre os diversos tipos de transe extático e as músicas implicadas, com base a minha própria experiência pessoal e de campo.

IV.1 - Similaridades

a) O transe extático sempre traz inerente uma enorme carga emocional, seja qual for o sentido com que é vivido (sentido místico-religioso, xamânico-curativo, de possessão, etc.), e são muitas as expressões que encontramos para referir-se a isso (os místicos cristãos falam de "amor", os possessos afro-brasileiros de "arrebatamento", os xamãs amazônicos shuar de tsentsak ou "flechas mágicas" que unem as pessoas, etc.). Neste sentido, C.G. Jung ressaltou que o ritmo repetitivo, qualquer que seja a forma em que se manifesta, é um dos caminhos para despertar a emotividade. Daí que, por exemplo, uma característica de certos neuróticos seja a de apagar seus cigarros no cinzeiro amassando-os repetidamente, ou que certas psicopatologias relacionadas com grandes bloqueios emocionais levem o sujeito a estar durante horas absorto em um movimento rítmico. Com isso se colocaria de manifesto que qualquer música, pois, em princípio deveria ser adequada para o transe místico desde que tenha um ritmo intenso e marcado e, efetivamente, muitas das músicas usadas entre os povos indígenas siberianos, ameríndios, extremo-orientais ou africanos são peças de variada tessitura rítmica, mas que têm em comum sua longa duração, sua repetitividade e monotonia que amiúde só é rompida por um in crescendo que conduz desde uma pauta rítmica base, à mesma pauta mas acelerada. Além disso e por razões físicas, poderíamos acrescentar que o ritmo provavelmente é melhor assimilado se é produzido por instrumentos que dêem um som grave, com uma freqüência de 4 a 7 ondas/seg., mas isso não é imprescindível (durante minha experiência de trabalho de campo com xamãs shuar e achuara, pude experimentar em diversas ocasiões tais transes extáticos de caráter xamânico e sempre foram acompanhados ou pontuados por um som agudo e rítmico proveniente de um pequeno galho de ramas entrançadas). Por outro lado, esta profunda carga afetiva que acompanha e caracteriza todo transe extático, explicaria o fato de que o bruxo, xamã, místico, possesso, etc. seja quase sempre um indivíduo frágil, enfermiço e especialmente muito sensível desde o ponto de vista emocional, amiúde sendo a ele permitida a homossexualidade e outras características próprias de uma inversão cultural.

b) como conseqüência da epígrafe anterior, se pode fixar como segundo fator similar a todos os transes extáticos o trânsito emocional desde a dor até a plenitude beatífica, o qual costuma ser vivenciado por parte dos indivíduos que dizem aceder a tais estados. Primeiramente, o trânsito até a experiência extática é uma vivência psicologicamente (e por vezes inclusive fisicamente) dolorosa (o "esquartejamento" a que se vê submetido o ego cotidiano e que é visualizado nos processos iniciáticos xamânicos com estas mesmas expressões; sobre isso ver a magnífica obra de ELIADE, 1982), o qual serve de motivo aos xamãs e feiticeiros amazônicos para cobrar a seus congêneres, ainda que se trate de sua própria vontade, pela dor que devem atravessar antes de aceder aos estados modificados de consciência que lhes há de permitir curar. A mesma expressão dolorosa se acha nos textos dos místicos cristãos, atua de objetivo negativo a ser superado no budismo oriental, e se reconhece como um dos indicadores do próximo "encavalamento" de que há de ser objeto um possesso afro-cubano. Entretanto, esta dor psíquica como primeira fase que se tem que atravessar desemboca em um gozo desbordante e em uma profunda apreciação estética da realidade, daí "os cantos belíssimos", "os seres formosíssimos" e demais expressões usuais para referir-se ao percebido durante o êxtase.

c) em terceiro lugar, também se trata de algo universal o fato de que a música age como estímulo-guia durante o transe xamânico. A música é a melhor e provavelmente única referência externa que, qual fio de Ariadne, guia o sujeito extático durante a excursão psíquica pelas consciências dialógicas. Os casos que mais discussão geraram sobre o tema são aqueles em que se afirma que a música "induz" por si mesma o transe extático. Creio poder afirmar que a música per se nunca provoca o transe ainda que assim pareça desde o exterior. Em realidade, é correto partir da premissa de que existe uma predisposição genética ou inata para entrar nestas consciências alternativas (não se encontrou o jogo sináptico que o explicaria desde um ponto de vista neurofisiológico, mas a universalidade do fenômeno permite tal inferência sobre uma base bastante segura), e cada indivíduo tem maior ou menor predisposição inata a isto, da mesma forma que existem pessoas que podem correr mais rápido ou que são mais afinadas de ouvido que outras, tendo recebido uma enculturação similar. Neste sentido, há sujeitos que parecem ter uma especial predisposição para o transe extático e buscam com maior intensidade que outros a forma de cultivar seu imaginário mental e o mundo de exaltação íntima e emocional que é a matéria-prima de tais consciências alternativas. É então, a partir do processo de enculturação específica, que efetivamente entra em campo a eficácia do simbólico, e talvez o som de um tambor ritual por si mesmo já é capaz de ativar a lembrança de tais experiências no sujeito treinado, ao estilo da campainha e o cachorro de Pavlov, mas não por isto se deve atribuir à música a capacidade intrínseca de induzir transes extáticos. Repito, a música, qualquer que seja a forma que adquira nas tradições de cada povo, é a guia externa que permite ao sujeito extático manter-se com a consciência desperta para o mundo interior mas sem perder-se na dimensão do imaginário ativado. Quando isso acontece, em nossas sociedades falamos da loucura como forma de patologia, e também é algo já conhecido e aceito que o xamã tribal ou o místico cristão são indivíduos salvos do perigo de cair em mãos da loucura porque estão acostumados a jogar com ela. M. Eliade afirma que o xamã tribal pode curar as doenças de seus congêneres porque ele mesmo passou pela loucura e se curou a partir de dentro, com o qual é o sujeito que conhece a "teoria" da desalienação por sua própria experiência. Portanto, concluo que a música tem um papel similar em toda forma de transe extático como guia perceptual exógena ao próprio sujeito, mas que por si mesma não pode agir estimulando mais o transe de que quando antes houve um processo de condicionamento ou quando se trata, em casos extremos, de sujeitos especialmente propensos a entrar em tais mundos dialógicos.

d) o quarto fator de similaridade em todo transe extático é a existência de um elemento catártico de caráter físico: uso de psicotrópicos, respirações que conduzem à hipoxia, saturação perceptual ou privação sensorial, rígidos jejuns, etc. Habitualmente se obviou este elemento físico por não estar relacionado com a música como tal, mas sem dúvida é a alavanca que permite compreender os processos biológicos do êxtase. Segundo os trabalhos de E. Bourguingon que citei anteriormente, na imensa maioria dos povos exóticos se consomem substâncias psicotrópicas ou enteógenas de forma consensual e quase sempre encontramos este consumo associado a ritos extáticos ou iniciáticos; os gregos clássicos utilizavam o fungo parásito Panaeolus papilionaceus, rico em ergotamina e precedente do famoso LSD-25, como ingrediente básico do pão que distribuíam entre os participantes nos conhecidos ritos mistéricos e secretos de caráter oracular; também os cantos gregorianos desfrutam de um duplo componente extático: por um lado está o conteúdo semântico dos salmos e textos cantados que age no sentido da eficácia do simbólico, e por outro lado se acha o tema do controle da respiração a que a execução do canto gregoriano obriga. Se tratam de notas longas, cujo primeiro resultado desde o ponto de vista fisiológico é uma hipoxia cerebral (uma queda do oxigênio no cérebro), o que não é perigoso desde o ponto de vista patológico mas que induz sim a experiências de tipo extático que posterior ou sincronicamente aos cantos modulam e direcionam para uma determinada direção (por exemplo, entender tal experiência como de união mística com a divindade).

e) a função adaptógena de todo estado de transe extático é a última das similaridades observadas. Em quase nenhuma cultura se anima aos indivíduos a esforçar-se e sofrer no transitar até o êxtase se não é com algum motivo explícito. O motivo costuma ter relação com a resposta ou a busca de soluções a eventos psicológicos ou materiais, mas sempre claramente definidos. Por exemplo, a ayahuasca, mistura enteógena dos indígenas amazônicos, é chamada Santo Daime pelas igrejas sincréticas brasileiras cuja principal característica é o de realizar o ato da comunhão com um sacramento autêntico —em vez de fazê-lo com um placebo— que induz a vivência extática, codificada como o contato com a divindade. Santo Daime, em português, literalmente significa "Santo, dai-me", porque os seguidores de tais religiões entendem que se deve consumir Daime, uma forma de ayahuasca, com alguma finalidade explícita, para resolver algum conflito ou para pedir algo. Neste sentido, se pode afirmar que a busca de soluções adaptativas por meio do êxtase é um recurso adaptativo universal (o xamã é quem regula sua comunidade tribal, o místico é quem ordena e decide a partir das mensagens recebidas ou de sua verdade revelada, etc.).


IV.2 - Divergências

a) a principal diferença entre os diferentes estados de transe extático radica no objetivo que move a cada sujeito para acercar-se a tais experiências. Assim, é cada sociedade quem, por meio de seus ideais culturais, modula a finalidade que atrai à experiência extática, e é a raiz de tal variedade de formas culturais e de finalidades explícitas que varia a manifestação fenomênica do transe extático. Ou seja, se trata de uma experiência de certa forma única para toda a humanidade a qual se vive condicionada pelos valores culturais concretos de cada sociedade. Para colocar um paralelismo ilustrativo: todo ser humano come, ingere nutrientes para poder viver, mas a experiência do comer está totalmente condicionada pelos valores e finalidades culturais (o que comer, quando, em que postura, em companhia de quem se pode comer e de quem não, o rito ou ausência de ritualidade que envolve o ato de ingerir alimentos, etc.), o qual desemboca em um amplo leque de possibilidades fenomênicas quanto ao fato único de ingerir alimentos. Neste sentido, pois, se pode realizar a seguinte divisão geral de finalidades e de manifestações do transe extático:

a.1.- transe xamânico: a finalidade básica e explicitada universalmente é a vidência direcionada à busca de respostas pragmáticas (a uma irregularidade climática, a um conflito social...) e a cura de enfermidades.

a.2.- samhadi ou êxtase budista: a finalidade é o autodescobrimento e a liberação das cadeias de desejos geradores do sofrimento como característica quase essencial da vida humana.

a.3.- êxtase cristão ou teresiano, cuja finalidade última é a união mística e amorosa com a divindade, por meio da qual o sujeito tem uma experiência direta e integradora de Deus, busca respostas a suas interrogantes transcendentes e por vezes também a questões pragmáticas.

a.4.- transe de possessão: a finalidade é que o sujeito que atua como médium seja possuído, "cavalgado" ou "montado", pela correspondente divindade, seja benéfica ou maléfica, para aceder a mundos superiores e à informação útil para a vida cotidiana.

a.5.- transe terapêutico: se resumiria na exploração da possibilidade que dá este estado de dialogismo cognitivo para analisar, trazer à consciência e "desfazer" os nós górdios que se produzem em nossas formas de perceber e pensar a realidade, no sentido de objetivar a origem de pautas de conduta e atitudes negativas para corrigi-las. Daí o extenso uso da MDMA (popularmente chamada "ecstasy") em âmbitos psicoterapêuticos até que se proibiu seu uso e distribuição atendendo a razões de caráter político e não sanitário (não existe um só informe válido sobre a periculosidade de tal meta-anfetamina que tenha resistido a um segundo exame de laboratório; ver o exaustivo resumo de sua história em CAPDEVILA, 1995). Na década dos anos 1950 a 1960 houveram numerosos especialistas em psicoterapia que desenharam métodos para aceder a tais estados de consciência modificada por meio do uso de psicotrópicos e/ou com ajuda da música.

a.6.- transe lúdico: creio que apenas praticado em nossas sociedades ocidentais atuais nas discotecas ou fora delas. Sua finalidade não é a transcendência nem a adaptação em nenhum sentido explícito, mas sim que é a busca do prazer que ocasiona o fato de experimentar a amplificação emocional que é característica básica do transe extático e que rompe os bloqueios psicológicos cotidianos; seria um transe sem finalidade, simplesmente auto-remunerador. Por isso a vacuidade cognitiva que caracteriza aos adolescentes e jovens usuários de MDMA (ou dos derivados mais tóxicos que se costumam adquirir no mercado negro) quando consomem excessivamente este psicotrópico sintético: o problema aí estaria na falta de uma finalidade que oriente tal experiência ápice.

Para encerrar, depois de haver realizado uma pequena excursão pelos argumentos dados ao longo da história para defender a física da música como impulsora direta do transe extático ou, em sentido contrário, para defender o condicionamento adquirido como causa última dele, acabarei como disse Goethe em referência à diversidade de credos religiosos de sua época: estou de acordo com todas as afirmações que propõem uma causa ao fenômeno analisado, mas estou em desacordo com todas as negações que fazem os pesquisadores revisados.

 

Notas:

[1] Dr. Fericgla é presidente da "Societat d'Etnopsicologia Aplicada i Estudis Cognitius" e Prof. MGS da Universitat de Barcelona. E-Mail: info@etnopsico.org e web: http://www.etnopsico.org.

[2] Enteógeno: neologismo que traduzido livremente vem a significar "que gera deus dentro de nós", cunhado a partir da raiz grega teus, deus, e do sufixo -gen. Se utiliza em meios especializados fazem três décadas para referir-se a aquelas substâncias de uso milenar, e quase sempre de proveniência vegetal, que o ser humano consumiu desde as origens da pré-história conhecida para colocar-se em contato direto com seu conceito de divindade, seja o que for; para experimentar aquilo que se entende sob a idéia primordial de divindade. Até umas décadas atrás se usava o termo "psicodélicos" ou "alucinógenos" para referir-se a tais substâncias, mas se tratam de categorias lingüísticas absolutamente errôneas dado seu sentido literal (não é correto dizer que "um xamã amazônico consome alucinógenos") e porque, ademais, "alucinógeno" é uma palavra que foi carregada com um conteúdo negativo totalmente distante da finalidade sagrada com que os humanos consumiram tais substâncias psicoativas durante milênios. Desde 1995 já se fala inclusive de "enteologia" e "enteobotânica". Para uma discussão atual e detalhada da etimologia e sentido deste neologismo, ver OTT, 1996 e CALLAWAY 1996.

[3] A Plêiade é o nome que recebeu uma famosa escola poética francesa de mediados do século XVI, agrupada em torno de Rostand. O que principalmente unia a seus membros era um forte desejo de renovar a poesia francesa diante da escola e propostas de Marot. Seu interesse estilístico e temático radicava em uma retomada do classicismo, motivo das renovadas discussões sobre a origem do transe extático já que, se bem que na França renascentista isso tenha um interesse relativo, não se pode esquecer que no mundo grego clássico as experiências extáticas ocupavam um lugar de primeiríssima ordem cultural tanto na forma oracular (Samotrácia, Elêusis) como na forma de rito iniciático que todo adulto devia passar pelo menos uma vez na vida. Tanto Platão, como provavelmente também Aristóteles, foram iniciados nos mistérios extáticos no templo de Elêusis.

 

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Publicado em: 11/08/2008

Autor: Dr. Josep Maria Fericgla

Fonte: Revista Arca da União



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