Artigo de Juarez Duarte Bomfim



Bebida de poder inacreditável: A terapeutização da ayahuasca empobrece a experiência

 

Vinho das almas, liana dos espíritos, cipó dos mortos. A ayahuasca é o vinho do êxtase espiritual. E depois que se prova do vinho do êxtase espiritual, se entende que nenhuma outra experiência pode ser igual.

Os prazeres que o álcool e as drogas proporcionam são transitórios, e terminam por trazer a infelicidade. Mas a sagrada bem-aventurança nunca tem fim.

Na “miração” Deus faz com que experimentemos esse sagrado estado mental, imersos na paz curativa. Quando a alegria divina chega, somos elevados no Espírito. Ao sobrevir o profundo êxtase de Deus os pensamentos se aquietam banidos pelo comando mágico da alma.  Bebemos a bem-aventurança Divina, experimentamos uma embriaguez de alegria que nem mil goles de vinho poderiam dar.

O Estado de Expansão da Consciência proporcionado pela ayahuasca é a experiência em que o individuo tem a impressão de que o funcionamento habitual de sua consciência se modifica e que ele vive uma outra relação com o mundo, consigo mesmo, com seu corpo, com sua identidade.

O efeito dessa beberagem pode ser definido como uma alteração qualitativa no padrão comum de funcionamento mental em que o experimentador sente que sua consciência está radicalmente diferente de seu funcionamento “normal”.

Falar de ayahuasca ou beber ayahuasca é, inevitavelmente, adentrar o campo do conhecimento humano ao qual denominamos de religioso. Religião é uma forma de representação do mundo, de concepção do mundo. A religião ajusta as ações humanas a uma ordem cósmica imaginada e projeta imagens da ordem cósmica no plano da experiência.

Um dos usos urbanos tradicionais da ayahuasca encontra-se no culto do Santo Daime.

No culto do Santo Daime a ingestão desta beberagem produzida a partir da decocção do cipó jagube (banisteriopsis caapi) e da folha rainha (psychotria viridis) proporciona o que se designa por “miração”.

A miração é o estado de comunhão com Deus, quando se transcende a consciência mundana e se percebe o seu ser como Espírito, feito à imagem do Divino. A consciência expandida leva o individuo ao despertar da sua destinação espiritual, e começa a compreender a Missão que lhe foi reservada. A ayahuasca, bebida de “poder inacreditável”, lhe leva a viajar por outros planos astrais e dimensões espirituais.

O verbo “mirar” corresponde a olhar, contemplar. Dele deriva-se o substantivo “mirante”, que é um local alto e isolado onde se pode descortinar uma vasta paisagem. A palavra “miração” une contemplação mais ação, o que expressa de maneira clara que o termo foi cunhado por pessoas que eram plenamente conscientes da viagem do Eu no interior da experiência visionária — característica do êxtase espiritual. Pode ser simbolizado pela viagem da águia voando em direção ao sol.

Entre os daimistas (ayahuasqueiros) se diz que depois de tomar a bebida, o indivíduo fica “pegado” ou “mira”. Nesse estado ele está sujeito não só a experiências visionárias e auditivas como também a revelações ou intuições de grande profundidade e emoções.

O Estado de Expansão de Consciência pode surgir naturalmente ou ser induzido mediante distintas práticas contemplativas ou — para alguns — com o uso da ayahuasca. Exprime-se nas formas de experiências espirituais, estados místicos de consciência, práticas meditativas, estados xamânicos, rituais ancestrais ou na simples relação com o mundo natural.

Para poder definir o conteúdo destas experiências extáticas, todas as grandes tradições religiosas elaboraram termos específicos: o Zen fala do satori; o Taoísmo sobre hsù (“estado de vazio”); o Sufismo sobre faná (“extinção do ego”); o Budismo sobre nirvana, a Yoga sobre o samadhi; o cristianismo catolicismo sobre o “reino dos céus” — e o culto do Santo Daime de “miração”.

Os daimistas consideram que o “êxtase” místico revelador, próximo ao estado de “iluminação” proporcionado por essa bebida feita de um cipó e folha, é um atalho para a comunhão com o divino, pois as demais práticas meditativas, contemplativas e religiosas requerem um longo processo de disciplina, exercício, aprendizagem e graça divina. Já a miração está ali, ao alcance de todos — ou quase todos.

Existe uma máxima entre os daimistas que afirma: “o Daime é para todos, mas nem todos são para o Daime”. Isto porque os efeitos da bebida não são garantidos para o usuário. Para alguns, a bebida pode ter apenas efeito emético e purgativo; para outros, nem isso. São os mistérios da bebida sagrada.

Os adeptos da Doutrina do Santo Daime comumente passam por uma experiência que se pode denominar de “revelação mística”, e muitas vezes a compara a um “renascimento”.

Vivencia-se uma emoção profunda e muito forte, semelhante ao êxtase; uma profunda sensação de paz ou tranquilidade; a sensação de estar em harmonia ou em comunhão com o universo; uma sensação de profundo conhecimento ou profundo entendimento; a sensação de que é uma experiência muito especial que seria difícil ou impossível descrevê-la adequadamente com palavras.

Apesar de ser uma experiência “indescritível”, a verve inspirada de um escritor ayahuasqueiro criou belas imagens nesta narrativa a seguir:

“Aí eu vi. As pessoas bailando e agitando seus maracás eram a celebração da origem da vida. O ritual originário da celebração do início do homem sobre esse planeta. A Floresta resplandeceu em volta e o cipó era a compreensão de tudo, um ser que a tudo assistia desde o início. Eu entendia o Universo, a vida, a criação, o seu profundo sentido e mistério. Eu entendia o tempo em seu fluxo desordenado e em sua permanência. Tudo era e não era. Tudo que seria, continuava sendo. Eu era o universo desde os tempos mais imemoriais e o meu próprio corpo, era ele um universo a recriar, a cada segundo, milhões de ciclos de vida.

“Aquela dança, onde a energia era constantemente domesticada e apurada, abria um alçapão no tempo. As visões tinham formas de lembrança. De algo que eu já vira. Em algum momento eu já fora parte desse peso da floresta, eu trazia em mim milhões de anos da evolução humana que agora desfilavam ante meus próprios olhos como fotogramas vivos.

“A vida se explicou para mim desde suas origens. Era uma dádiva e um desígnio de forças nunca por mim suspeitadas. Existia um poder que pairava sobre todos. Não era imaginação, projeção, arquétipos, atavismos, era uma entidade colossal, personificada ali, naquele cipó, naquela bebida” (Alex Polari de Alverga, O livro das mirações, p.54).

Como já foi dito, quem passa por uma experiência desta, muitas vezes compara a um “renascimento”, ou que lhe foi dado o direito de mirar através das “portas da percepção”.

Esse processo pode ser vivenciado por cada neófito individualmente, e a sua possível adesão ao sistema religioso ayahuasqueiro traz consigo uma transformação (morte simbólica) e reorientação da existência simbólica e social — o “renascimento” através da revelação religiosa.

A experiência e prática das religiões ayahuasqueiras consideram, e os estudiosos corroboram que o efeito da ayahuasca está alicerçado em três pilares: 1. o efeito da bebida no organismo humano, que difere de individuo para individuo; 2. o set (a atitude do individuo no momento do consumo, atentando também para a sua estrutura de personalidade) e 3. o setting (a influência do ambiente físico e social no qual ocorre o uso).

Esses aspectos reunidos é que proporcionam a entrada em um Estado de Expansão da Consciência dentro do setting social e físico que direciona a “viagem” para os planos invisíveis.

É por isso que, responsavelmente, é autorizado no Brasil o uso religioso da ayahuasca. O Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), órgão do Ministério da Justiça, publicou no Diário Oficial da União, dia 25 de janeiro de 2010, resolução regulamentando o uso religioso da Ayahuasca

Terapias e ayahuasca

Terapia é o nome dado a um conjunto de práticas psíquicas e corporais que objetivam a harmonia da saúde do individuo. É um instrumento que visa erradicar ou diminuir o sofrimento e a má interpretação dos diversos eventos que ocorrem nas diferentes esferas da vida: pessoal, emocional, profissional e nos relacionamentos.

A terapia busca proporcionar o autoconhecimento, através do mergulho em si mesmo, conhecer-se profundamente e, assim, poder proporcionar uma melhor auto-aceitação resultando em mais felicidade e serenidade para o individuo superar os desafios que a vida apresenta.

A terapia, como sinônimo de tratamento de saúde, pode ser também medicamentosa.

A Resolução Conad 01/2010 regulamenta o uso da ayahuasca para fins religiosos. Porém, em relação ao seu uso terapêutico é pouco clara: afirma que A utilização terapêutica da Ayahuasca deve ser vedada, até que se comprove sua eficiência por meio de pesquisas realizadas por centros de pesquisas vinculados a instituições acadêmicas, obedecendo às metodologias científicas.

E mais adiante, nas recomendações, a Resolução sugere que devem-se fomentar pesquisas cientificas abrangendo as áreas de: farmacologia, bioquímica, clínica, psicologia, antropologia e sociologia, incentivando a multidisciplinaridade.

Tudo isso abre espaço para o uso terapêutico da ayahuasca no combate à drogadicção e o alcoolismo, por exemplo. Apesar do uso terapêutico da ayahuasca não estar regulamentada, também não parece haver proibição ou disposição das instituições governamentais de interferir em tais práticas.

Acompanho duas instituições que desenvolvem este trabalho caritativo junto a drogadictos e alcoolistas — uma em Rio Branco-Acre e outra em Sorocaba-São Paulo — e todas duas são instituições de caráter religioso que prestam este serviço à comunidade, inclusive com o apoio de órgãos públicos.

Ganhou notoriedade recente (2015) uma experiência em Ji-Paraná-Rondônia, de terapias para reintegração social de detentos. Todavia, cabe esclarecer que o uso de ayahuasca em cerimônia religiosa com a participação de alguns destes detentos é parte de um convênio da ONG (Organização Não-Governamental) que desenvolve este trabalho com a instituição religiosa ayahuasqueira. O caráter da cerimônia é, antes de tudo, religioso.

Existem outras experiências, mas não atentarei para estas, até por falta de conhecimento maior.

Terapeutização da ayahuasca

Mas o que quero enfatizar aqui não são essas práticas caritativas de inspiração religiosa, todas elas muito louváveis, e sim um outro fenômeno.

Existe um frutífero mercado “holístico” de terapias alternativas que acenam com tratamentos para os males físicos, psíquicos e emocionais. O menu é vastíssimo: ayurveda, acupuntura, aromaterapia, cromoterapia, fitoterapia, reflexologia, iridologia etc., etc. e etc.

Alguns terapeutas associam estas técnicas e práticas a paradigmas filosóficos ou psicológicos que visam o “autoconhecimento”, pois daí gera-se o holismo pretendido. O paradigma pode ser baseado na literatura de pensadores como  Osho, Lacan, Eckhart Tolle, Daniel Goleman, Edgar Morin e tantos outros.

O fenômeno neo-ayahuasqueiro que tomou conta das grandes cidades brasileiras e regiões de influência, que significa o uso urbano da ayahuasca sem vínculo orgânico ou doutrinário com as matrizes religiosas tradicionais — Santo Daime, Barquinha e UDV — fez com que alguns desses terapeutas introduzissem a ayahuasca nas suas práticas.

Isto possibilitou que os novos demandantes ressignificassem o uso da bebida, comparando-a a uma ferramenta terapêutica que proporciona o autoconhecimento. A mudança de percepção de uma bebida considerada sagrada, de caráter religioso, para um medicamento natural com fins psíquicos, emocionais e de inspiração filosófica.

Há um frutífero mercado holístico-ecológico na forma de “oficinas” e “vivências” nas chapadas brasileiras, workshops de fins de semana, etc. Práticas que são herdeiras do movimento New Age dos anos 1970, e a ayahuasca passou a fazer parte de todo este “cadinho” de experimentações.

Daí a associação ayahuasca= autoconhecimento.

Pergunta: esta santa bebida serve para desenvolver o autoconhecimento?

Sim, é certo! Diz um hino doutrinário:

“Eu tomo Daime para ver os meus defeitos

Eu tomo Daime para eu me corrigir…”

Porém, o Daime/ayahuasca não é só isso! É muito mais do que isso!

O hino citado continua, ressaltando a dimensão místico-religiosa e devocional:

“Não tomo Daime para me engrandecer

Porque o grande é Jesus e está aqui”

A experiência com esta bebida visionária é única, inigualável. O ayahuasqueiro experimenta o extraordinário, o extracotidiano, a dimensão mágica da existência. Testifica os prodígios.

A experiência com este Santo Sacramento não pode ser reduzida — e, acredite, já é muito — somente ao autoconhecimento.

A religiosidade ayahuasqueira é um tipo de religiosidade onde o adepto, em contato com esta bebida sagrada, se desloca da vida ordinária para outros mundos, outros planos, adentrando os encantos e mistérios do Céu, da terra e do Mar.

“Bem-aventurados os que não veem e creem”, disse Jesus (João 20:29); e são também bem-aventurados e afortunados os que veem e creem — nós, os ayahuasqueiros.

E… que tal viajarmos na luz do Daime/ayahuasca e mergulharmos no Coração do Mundo, mar quântico de felicidade?

“A profundeza que vós tem

Consenti-me eu entrar

Para eu ver tanta beleza

Para mim acreditar”.

Concluindo: a terapeutização da ayahuasca levou a que, lamentavelmente, muitos usuários — ou alguns — não acessem. Não vivenciem…

Medicamentalização da ayahuasca

Medicamentalização ou medicalização são termos usados no mais das vezes depreciativamente, como crítica ao que se considera o hábito atual de usar medicamento para tudo e contra todos.

Assim, medicalização pode ser visto como o fato de tratar aquilo que é absolutamente normal na vida de um indivíduo como um problema de saúde e, consequentemente, como assunto de domínio médico.

A ayahuasca despertou a atenção e o interesse de pesquisadores da área de saúde e, no caso brasileiro, existem instituições universitárias com projetos de pesquisa em desenvolvimento, investigando o potencial e as possibilidades de uso psiquiátrico da beberagem ou dos seus princípios ativos.

O caso mais divulgado é de uma instituição prestigiosa, a Universidade de São Paulo (Ribeirão Preto), que investiga a ayahuasca como uma bebida que tem “propriedades antidepressivas”.

A matéria jornalística sobre o assunto afirma ainda que “outros estudos já mostraram que a ayahuasca também consegue atenuar sintomas de ansiedade”.

A fonte de informações que estamos analisando é insuficiente, uma pequena matéria de jornal, porém, mesmo assim, cabem algumas considerações.

(Link: http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2015/06/1641679-ayahuasca-melhora-depressao-em-estudos-brasileiros.shtml)

Segundo a reportagem do jornal, uma médica-psiquiatra adverte para uma limitação: o perigo do uso da “droga” (sic) fora dos rituais ou do contexto de pesquisa.

E, desconhecendo ou desconsiderando todas as pesquisas anteriores sobre ayahuasca, esta médica enuncia que “ainda não sabemos se as substâncias que compõe o chá causam dependência, o que poderia ser um risco bem sério para se assumir”.

Bem, ou esta médica-psiquiatra ignora o Estado da Arte sobre o tema, ou não reconhece as conclusões explicitadas na literatura acadêmico-científica já produzida até os dias atuais.

Pois a regulamentação do uso religioso da ayahuasca pelo Estado e governo brasileiro é baseada em pesquisas científicas que afirmam que esta substância não causa dependência e nenhum malefício ao organismo humano e ao aparelho psíquico. A decisão do governo brasileiro (Resolução 01/2010) cria uma jurisprudência internacional importante, confirmando os pareceres da Suprema Corte dos EUA.

A reportagem continua, insistindo: “com todo esse potencial farmacológico a ser explorado, já existem farmacêuticas interessadas em achar uma formulação na qual os princípios ativos da bebida pudessem ser administrados com mais segurança e menos efeitos colaterais”.

E aí ficamos a nos perguntar: que significa “mais segurança e menos efeitos colaterais”?

A resposta vem logo a seguir: “um dos problemas é que a bebida é ‘suja’ e não contem somente os princípios-ativos DMT e THH”.

E o entrevistado explica: “’claro que há contaminantes, que podem ser responsáveis pelos efeitos colaterais’. Em média 50% das pessoas que bebem o daime têm náuseas e/ou vomitam”.

Qualquer ayahuasqueiro que se preze sabe que a santa bebida é la purga, quer dizer, é purgativa e emética, e estes sintomas compõem o conjunto de efeitos da ayahuasca no usuário.

Pois o vômito e a defecação proporcionam uma “limpeza” física, mental e emocional no organismo do individuo, é parte constitutiva da “terapia”, isto é, da experiência do usuário com a bebida.

É obvio que a poderosa indústria farmacêutica tem toda a capacidade de inovar e gerar novos produtos. Mas, será possível produzir um medicamento antidepressivo com base na ayahuasca?

Laboratórios clandestinos já produzem DMT. Mas ayahuasca não é DMT (Dimetiltriptamina). Em todos os fóruns internacionais esse argumento tem servido para legalizar o uso religioso da Ayahuasca:

Estudos assinalam que uma substância que tem em sua composição bioquímica Dimetiltriptamina (DMT) precisa de no mínimo 2% de DMT em sua farmacologia para ser enquadrada como droga alucinógena. A ayahuasca tem 100 vezes menos DMT do que o estipulado: sua composição farmacológica padrão é de 0,02% de DMT. Isto significa que — repetindo — ayahuasca não é DMT.

Os efeitos da ayahuasca, descritos nessa pequena comunicação, é resultado do conjunto de componentes que compõem a bebida, e não só “os princípios-ativos DMT e THH”, como afirma a entrevista do pesquisador uspiano.

Daí que essas pesquisas poderão resultar em uma substância medicamentosa que não é ayahuasca. Porém, há ceticismo em relação a esta possibilidade.

E… Por quê?

a. Há o risco da inocuidade. Ineficácia para produzir o efeito pretendido, pois para alguns, a ayahuasca não provoca nem efeitos purgativos e eméticos, muito menos experiências cognitivas e visionárias;

b. como já foi exposto, o efeito da ayahuasca está relacionado  a como ela atua no organismo humano, que difere entre os usuários, o set (condição física, emocional e mental do individuo) e o setting (o ambiente onde ocorre a experiência);

c. E, principalmente, a impossibilidade de controlar os efeitos não-desejados, inesperados e incontroláveis da ayahuasca, principalmente o que se designa por “peia”.

A peia do Daime/ayahuasca

Peia significa surra, castigo. Provoca grande mal-estar físico e psíquico. A peia não é necessariamente os efeitos purgativos e eméticos que podem ocorrer na ingestão de Ayahuasca. Isto representa “limpeza” corpórea, o preparo do corpo e dos órgãos digestivos para o trabalho espiritual a começar.

Peia não é a bad trip do linguajar dos drogadictos, pois a peia é parte constitutiva do uso da ayahuasca.

Que é a peia do Daime/ayahuasca?

É parte integrante e quase sempre presente nos rituais e a qual todos estão sujeitos;
é um castigo ou disciplina aplicada “pela ayahuasca” em decorrência de uma “falha moral“;
é consequência da desobediência à instruções recebidas “do mundo espiritual”;
se manifesta como um descontrole sobre os efeitos da bebida; proporciona uma “limpeza” física, mental e emocional.
É natural a ocorrência de vômitos e outros efeitos purgativos;
é vista como benéfica, no sentido de conscientizar o sujeito sobre falhas e erros cometidos, e sobre as formas de corrigir essas deficiências;
auxilia na interpretação e dá significado a infortúnios ou dificuldades vivenciadas pelos adeptos em suas vidas
A peia do Daime/ayahuasca e seus sintomas acima enumerados, são efeitos não-desejados, inesperados e incontroláveis da ayahuasca, que impossibilitam o seu uso recreativo, por exemplo.

Considera-se que esta será também uma limitação e dificuldade para o uso medicamentoso como antidepressivo e para “atenuar sintomas de ansiedade”.

A tríade doença-cura-saúde e a ayahuasca

Na tradição dos caboclos amazônicos, adeptos do pensamento mágico, as concepções sobre as causas das doenças e suas possíveis formas de cura enquadram-se em duas grandes categorias: doenças naturais ou doenças mágicas, estas últimas provocadas por “pessoas mal-intencionadas” ou entidades espirituais.

É aí que entra o trabalho dos curandeiros vegetalistas, que nas suas sessões utilizam da ayahuasca para sanar enfermidades não resolvidas pelos métodos da medicina oficial.

Talvez seja dessa tradição que o Centro Takiwasi, em Tarapoto, Peru, é herdeiro. Diz-se “talvez” porque o trabalho desenvolvido por este centro não é nosso objeto de investigação.

O Takiwasi é um centro de reabilitação e tratamento de adicções, retiros ou dietas na floresta amazônica, e desenvolve pesquisas sobre as medicinas tradicionais amazônicas.

No sistema de crenças do Santo Daime segue-se essa tradição ayahuasqueira, e a bebida é considerada um instrumento eficaz na cura das doenças, fundamentalmente da doença espiritual que seria a origem real e verdadeira das doenças físicas ou mentais.

O Daime/ayahuasca teria a capacidade de gerar sentimentos de transcendência que possibilitam a cura de desequilíbrios físicos, mentais ou espirituais.

A cura sendo vista mais como uma transformação espiritual do que a desaparição dos sintomas da doença ou, se for o caso, a própria desaparição miraculosa da doença física, geralmente doenças graves em que o paciente tinha sido “desenganado pelos médicos”.

Há uma crença que o Daime cura tudo, ou quase tudo, pois o Daime “só não cura sentença”, isto é, débitos cármicos contraídos em vidas passadas e que devem ser quitados pelo espírito reencarnante.

Nos sistemas religiosos ayahuasqueiros a questão da cura, ou melhor, a tríade doença-cura-saúde é considerada como um dos importantes “complexos temáticos” trazidos nos hinos, salmos e chamados que constituem a base doutrinaria das religiões e de suas liturgias.

Hinários de cura, trabalhos de cura e obras de caridade são realizados em benefícios dos “irmãos necessitados”, isto é, os membros do culto ou os visitantes que o procuram em busca de cura física, mental, emocional e espiritual.

Ciosos do risco de acusação de charlatanismo que pode se abater sobre os ayahuasqueiros brasileiros, o Grupo Multidisciplinar de Trabalho (GMT) nomeado pelo CONAD, órgão normativo do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, para regulamentar o uso ritual da bebida, esclarece  (Resolução 01/2010) que “tradicionalmente, algumas linhas possuem trabalhos de cura em que se faz uso da Ayahuasca”, porém esses eventos são “inseridos dentro do contexto da fé”.

Assim, “com fundamento nos relatos dos representantes das entidades usuárias, verificou-se que as curas e soluções de problemas pessoais devem ser compreendidas no mesmo contexto religioso das demais religiões: enquanto atos de fé, sem relação necessária de causa e efeito entre uso da Ayahuasca e cura ou soluções de problemas”.

“Achava-se ali uma mulher que, há doze anos, estava com uma hemorragia; tinha sofrido nas mãos de muitos médicos, gastou tudo o que possuía, e, em vez de melhorar, piorava cada vez mais.

“Tendo ouvido falar de Jesus, aproximou-se dele por detrás, no meio da multidão, e tocou na sua roupa. Ela pensava: ‘Se eu ao menos tocar na roupa dele, ficarei curada’. A hemorragia parou imediatamente, e a mulher sentiu dentro de si que estava curada da doença.

“Jesus logo percebeu que uma força tinha saído dele. E, voltando-se no meio da multidão, perguntou: “Quem tocou na minha roupa?

“Os discípulos disseram: ‘Estás vendo a multidão que te comprime e ainda perguntas: ‘Quem me tocou?’

“Ele, porém, olhava ao redor para ver quem havia feito aquilo. A mulher, cheia de medo e tremendo, percebendo o que lhe havia acontecido, veio e caiu aos pés de Jesus, e contou-lhe toda a verdade.

“Ele lhe disse: ‘Filha, a tua fé te curou. Vai em paz e fica curada dessa doença’” (Marcos 5: 25-34).

A tríade doença-cura-saúde e os adeptos das religiões ayahuasqueiras

A conversão de novos adeptos a um sistema religioso implica em mudanças no seu conjunto de valores. No caso dos adeptos das religiões ayahuasqueiras, essas mudanças são estimuladas por Estados de Expansão da Consciência propiciados pelo uso desta santa bebida.

A conversão e adesão do individuo a um sistema religioso traz consigo uma transformação (morte simbólica) e reorientação da existência simbólica e social. Essa mudança é considerada por aqueles que a vivem como um “renascimento”.

Alguns dos possíveis traços gerais constitutivos do “tipo ideal” do novo adepto da religiosidade ayahuasqueira se manifestam no plano da cultura e das mentalidades, mudanças em relação aos modos de vida e aos códigos intelectuais; a racionalidade posta em suspeição como modelo de explicação do mundo.

Podem ser: desprestigio do secular, desvalorização de aspectos como diversão e entretenimento; desprestígio de atividades identificadas a um apego à vida mundana; a ênfase em questões relativas ao afastamento do que é considerado tentações materiais e a busca da salvação do espírito. Uma transformação ética, a qual implica numa valorização da vida ultraterrena em detrimento de temas mais diretamente ligados à vida mundana.

O possível poder terapêutico da Ayahuasca está assim ligado à transformação moral, um fenômeno muito mais amplo do que uma cura puramente orgânica. O uso religioso desta santa bebida visto como um caminho para o conhecimento espiritual e o desenvolvimento pessoal.

Certo dia o Mestre Raimundo Irineu Serra Juramidã estava fazendo hoasca, mexendo na panela. A Virgem da Conceição, Rainha da Floresta apareceu e falou para Ele:

— Filho, o que é que tu quer que eu bote aí dentro dessa panela?

Ele Lhe respondeu:

— Saúde! Todo mundo quer saúde… Não! A Senhora bota felicidade…

Aí o Mestre Irineu pensou melhor e disse:

— Não! A Senhora bota sabedoria!…

Refletiu melhor e falou para Ela, a Virgem da Conceição, Rainha da Floresta:

 — A Senhora bota tudo que a pessoa que vier aqui já sabe o que quer encontrar, desde que seja pro bem e que seja no caminho do Nosso Senhor Jesus Cristo!

Publicado em: 01/08/2015

Autor: Juarez Duarte Bomfim

Fonte: jornalgrandebahia



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