de "Sexta-Feira Santa" a "Sou filho do poder"

No hino 104 a verdade se torna tão palpável que quase dá para tocá–la com a mão:

"Sou filho, sou filho,
sou filho do poder.
A minha Mãe me trouxe aqui,
quem quiser venha aprender.
Vou seguindo, vou seguindo
os passos que Deus me dá.
A minha memória divina
eu tenho que apresentar.
A minha Mãe que me ensina,
me diz tudo o que eu quiser:
sou filho desta verdade
e meu pai é São José.
A Sexta–feira Santa
guardemos com obediência:
três antes e três depois
para afastar toda doença".

Graças ao contínuo desdobrar e integrar dos conteúdos da memória, no Caminho do Retorno, ou arco para dentro, o dúplex em mestre Irineu canta "a minha memória divina eu tenho que apresentar", graças ao caminho que Deus lhe dá.

A entrega é incondicional, "vou seguindo os passos que Deus me dá", e o ensinamento é absoluto: "me diz tudo o que eu quiser".

O hino – justo, este hino! – se encerra com a única menção ao jejum ritual entre todos os hinos da base doutrinária, obrigando a uma longa reflexão, pois a importância crucial da "dieta", como é chamada no Acre, é em geral mal compreendida e uma vez mais passa por anacronismo ou viés cultural local ou é adotada sem maior aprofundamento de sentido.

Em todas as experiências religiosas o jejum ocupa lugar de destaque e, na Tradição cristã, perpassa o Antigo Testamento e o Novo Testamento.

O jejum implica uma atitude de fé, de humildade e de entrega a Deus – caso contrário, é só suplício ou farsa.

No Antigo Testamento, o jejum é requisito para o encontro com Deus: "Voltei minha face para o Senhor Deus em busca de oração e súplicas, com jejum, saco e cinza"1059 e "Esteve, pois, ali com o Senhor, quarenta dias e quarenta noites. Não comeu pão; não bebeu água. E escreveu sobre as tábuas as palavras da aliança, as dez palavras"1060.

É pedido de perdão de alguma culpa: "Quando Acab ouviu estas palavras, rasgou as vestes, vestiu um saco por sobre a pele e jejuou; dormia sobre o saco e caminhava a passos lentos. A palavra do Senhor foi dirigida a Elias, o tishbita: 'Viste como Acab se humilhou diante de mim? Porque ele se humilhou diante de mim, não farei vir a desgraça durante sua vida'"1061 ou "(…) Nesse dia jejuaram e declararam naquele lugar: 'Nós pecamos contra o Senhor'"1062

É lamentação por uma desgraça: "Celebraram a lamentação fúnebre, choraram e jejuaram até o entardecer"1063.

E é súplica antes de uma dura missão: "(…) lá eles choraram sentados diante do Senhor, e jejuaram naquele dia até a tarde"1064.

O jejum visa, porém, à conversão do coração, sem a qual ele não tem sentido: "Jejuais, mas procurando contenda e disputa, e golpeando maldosamente com o punho! Não jejuais como convém num dia em que quereis fazer ouvir no alto a vossa voz"1065 ou "Assim fala o Senhor a este povo: 'Sim, eles gostam de andar à toa, não controlam seus passos'. Porque não agradam ao Senhor, ele recorda agora a sua perversão, pune as suas faltas'. O Senhor me disse: 'Não intercedas em favor deste povo, não desejes sua felicidade. Se jejuam, não ouço o seu lamento'"1066.

No Novo Testamento conhece–se especialmente o episódio da tentação, quando, impelido pelo Espírito Santo de Deus, Jesus Cristo, antes de começar a parte pública de sua missão, jejuou por quarenta dias como expressão de confiante abandono ao desígnio do Pai: "Então Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. Depois de ter jejuado por quarenta dias e quarenta noites, acabou sentindo fome"1067.

Mas há também orientação, para que o jejum não sirva à hipocrisia e à ostentação de falsa piedade: "Quando jejuardes, não tomeis um ar sombrio, como fazem os hipócritas: eles assumem uma fisionomia para mostrar claramente aos homens que estão jejuando. Em verdade vos declaro: já receberam sua recompensa. Quanto a ti, quando jejuares, perfuma tua cabeça e lava o teu rosto, para não mostrares aos homens que estás jejuando, mas tão–só ao teu Pai, que está presente no segredo; e teu Pai, que vê no segredo, te retribuirá"1068.

O jejum propicia a abertura do homem a outro alimento: a palavra de Deus ("Não só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus"1069) e o cumprimento da vontade soberana do Pai, que sabe o que melhor nos convém ("Nisso os discípulos disseram entre si: 'Alguém lhe teria dado de comer?' Jesus lhes disse: 'O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra'"1070).

Retornando ao princípio da missão de mestre Irineu, o que vimos? A clara e direta orientação da Virgem da Conceição: "'Tu vais tomar essa bebida e entrarás em trabalho durante uma semana; durante esses dias tu só comerás macaxeira insossa e água e não vai ser preciso se dedicar exclusivamente a isso, não… Tu vais continuar desempenhando as tuas funções, vais continuar cortando a tua seringa e fazendo o teu trabalho. Não vou te atrapalhar, não!'. O fato é que, naqueles dias que foram determinados, até onde eu pude apurar ele só tomou daime até o segundo dia, porque daí por diante não foi mais preciso tomar, já mirava direto. E aqui, ali e acolá, durante a dieta, Ela também fez uma menção para ele: 'Olhe, Irineu, durante esses dias tu não podes nem ver rabo de saia de mulher'"1071.

Uma outra versão pode enriquecer a imagem que se vai construindo: "E quando ele perguntou qual era, o que ele deveria fazer para aprender realmente a trabalhar com a ayahuasca, Ela disse: 'Você vai passar uma semana comendo macaxeira insossa com água e sem fumar'. Ele já fumava esses cigarros que nós chamamos de 'porronca', um cigarro forte… Ele já fumava esse cigarro enroladinho [a mão], então também tinha que se privar desse vício, e ele se submeteu à prova"1072.

Então não era apenas jejum de alimento, sexo ou sal – no caso do sal, abstinência daquilo que "dá sabor à vida" – mas, também, de um dos mais renitentes vícios de quem o carrega: fumar.

Paremos aqui um instantinho e nos debrucemos sobre a conquista essencial que é, para o ser humano, abrir mão do desejo ou do impulso em prol de uma causa, uma qualquer, donde ser "provado": requer escolha, pede disciplina, indica maturidade e põe a vontade pessoal a serviço de um bem maior no qual se crê, pois "somos dominados por tudo aquilo com que o nosso eu se identifica e podemos dominar e controlar tudo aquilo de que nós nos 'des–identificamos'"1073.

Relembro um conceito de Ken Wilber ("a vontade espontânea é a do corpo–mente total, enquanto a segunda vontade é do ego, que se esforça e tem um propósito"1074) e retorno a ele: a primeira vez em que ouvi este hino de mestre Irineu, conheci em meu coração ser verdadeira a orientação, razão pela qual a minha vontade consciente deveria ser posta a serviço da instrução e da vontade da alma– mente–corpo total, que a reconhecia como vontade de Deus: abstinência sexual três dias antes e três dias após a Sexta–feira Santa, uma semana, portanto, "para evitar toda doença".

De imediato lembrei do jejum que se costuma fazer de carne vermelha na Sexta–feira da Paixão, que é o que parece ter restado do ensinamento sobre a importância do jejum ritual de contrição em torno desta data, e nunca mais deixei de acatar a orientação.

Não apenas o sentido era evidente, a voz segura e a fonte confiável, como era suficiente: é imperioso, no correr do arco para fora e do arco para dentro, aprender a dominar impulsos, em benefício da maturação psíquica do ego (como ocorre com as crianças), e depois conseguir direcionar o ego e seus desejos, em proveito da vontade espontânea e do conhecimento transmental1075 que está à nossa espera quando a ele nos entregamos.

Enquanto for somente o ego a dirigir os passos, estes serão limitados.

Isso não é fome, pois se vive de mandioca insossa e água, assim como se vive sem fumar; isto não é punição, pois não se prega a auto–flagelação nem o abandono definitivo de todos os prazeres1076. Isso é conquista de autodomínio, para abrir mão dele na entrega – já que, quem não se domina, vai entregar o quê, de si mesmo, a Deus?

E nem é de sexo, comida ou tabaco que se trata, aliás, pois até preparar–se para a passagem mestre Irineu teve vida sexual comum, inclusive com dona Peregrina1077, sempre teve por carne predileta a de porco1078 e fumava e mascava tabaco, além de "gostar muito de um rapé"1079.

Momentos assim, como os de jejum disciplinar, são conexão preciosa entre passado, presente e futuro, pois é no presente que podemos avaliar nosso passado para criar condições de sermos melhores no futuro. Durante o jejum, repetidamente espicaçada por sensações e sentimentos de falta daquilo que deseja e do qual se abstém – seja sexo, tabaco, comida, bebida ou fantasias postas a serviço do prazer1080 –, e desde que o jejum esteja a serviço da contrição, a pessoa se volta a si a rever comportamentos e atitudes, à busca de identificar erros e culpas acumuladas contra Deus – isto é, contra a justiça e as virtudes – e contra o próximo, a analisar como está, ela e quem com ela esteja, e a rogar por um futuro melhor para si e todos, no Corpo de Deus.

O jejum disciplinar é mais que seu efeito corporal, pois "efetivamente, não são as coisas deste mundo que ocupam a alma nem a prejudicam, pois lhe são exteriores, mas somente a vontade e o apetite que nela estão e a inclinam para estes mesmos bens"1081.

Ademais, limpa–se o corpo e a mente para a tentativa do contato.

Recordo um irmão admitindo, meses após um serviço que dirigi:

Reflexão mais demorada se me impunha, porém, mesmo sabendo que a abstinência sexual proposta pelo hino se associava à oração1084, à virtude, à misericórdia, à imploração e à conversão do coração, pois o que desde o primeiro dia ouvi em meu caminho daimista é que deveria seguir tal instrução para todos os serviços espirituais – o que nunca fiz.

Em minhas inquirições a respeito, só encontrava menções simbólicas ou difusas: "nós sabemos perfeitamente que o sexo nos traz saúde, mas também nos traz saúde e também uma fraqueza, porque 'puxa' muito e o daime é muito 'forte'. Eu cheguei a perguntar: 'Mestre, por que a abstinência sexual, o que poderá ocorrer se a pessoa não cumpri–la?' Ele me frisou bem claro dois exemplos, loucura ou tuberculose, uma das duas. Ou uma ou outra. Mas ele acrescentou também: 'pode dar um transtorno na sua vida e no seu cotidiano, uma desarmonia em casa porque o senhor não cumpriu, tudo isso pode trazer'"1085.

Afirmações como estas são entendíveis quando se prescreve para o coletivo: como exemplo corriqueiro, diz–se a quem está sob tratamento de infecções que "não se deve beber porque a bebida 'corta' o efeito do remédio" – e não que o antibiótico interfere no metabolismo do fígado, razão pela qual o principal órgão de desintoxicação do corpo humano ficará sobrecarregado, com maior risco para o paciente, se este beber…

Além de tudo, reduzem a expressão "para afastar toda doença" a problemas orgânicos corporais, quando se sabe que "cura", em seu sentido espiritual mais vasto, supera largamente este estreito e passageiro limite.

Por isso, para quem busca o Ensinamento, a reflexão contínua é necessária.

E tal reflexão era imperiosa, não apenas porque depois da maturidade pude viver e apreciar uma feliz sexualidade, graças a Deus, mas por carregar certeza de que as escolhas são individuais no caminho, assim como o mérito delas advindo: como aprendera com o budismo, anos antes, "após exame, crede no que vós mesmos experimentardes e reconhecerdes razoável, no que for conforme ao vosso bem e ao bem alheio"1086.

Afinal, mestre Irineu ensinava: "meus irmãos, tem gente que nunca tomou nem uma colherinha de daime e vive muito mais pertinho de Deus"1087.

Uma noite, saí no intervalo para tomar um chazinho de capim santo na cantina da Igreja "da Barquinha". Acendi um cigarro, recostei–me em um pilar de sustentação do puxado de telhas e, zuuummmm!, surgiram em minha frente dois chacras1088, ativando–se e "brotando" de mim: um, "girando" em sentido horário, brotando da garganta e azul–violáceo, outro, "girando" em sentido inverso, brotando da pelve e rubro–alaranjado. De imediato, compreendi serem a mesma possibilidade bioenergética1089, a de transcendência e a sexual.

Talvez – em meu particular caso – por agradável destinação ou pelo fato de a sexualidade compartilhada nunca ter sido, em toda a minha vida, só busca de satisfação de desejo ou impulso biológico: todas as vezes foi vivida em prol de algo com maior significação, razão, talvez, de não ter sido fonte de "maus pensamentos", os egoístas, vaidosos, mentirosos ou impositivos, que violam as virtudes ao impor vontade.

No correr dos anos, então, e de muita conversa e observação para análise, já que tinha por responsabilidade orientar uma irmandade, construí em mim a certeza de se tratar de importante variável individual – não apenas de pessoa para pessoa, mas de fase para fase no mesmo indivíduo, o que deve obrigar contínua autopercepção e firmeza no autoconhecimento, a cada caso e momento: há aqueles para quem a dieta deve ser absoluta, há aqueles para quem é possível maior liberdade, assim como há vezes em que mesmo para estes últimos seja conveniente maior contenção.

Ou, como ensina santo Agostinho, "é preciso saber que certos preceitos são comuns a todos e outros são particulares a classes diferentes de pessoas. Isso para que o remédio da doutrina não se estenda somente ao estado geral de saúde moral, mas também à doença própria de cada membro"1090.

O mesmo se dando com a alimentação nos dias de serviço: com a expansão para o Sul e Sudeste brasileiros, as práticas da doutrina daimista passaram a ser influenciadas por noções naturalistas, macrobióticas e de vegetarianismo, impondo um tipo de prescrição que nunca houvera e por vezes ultrapassa até o bom senso1091.

Neste sentido, já não bastasse o espanto que me tomou no intervalo de meu primeiro serviço bailado no "Céu do Mapiá", ao ser convidado a ir jantar na casa de quem ali me hospedava (arroz, feijão, ovo e lingüiça, ao que acrescentei uma banana…), e o fato de centros daimistas de variadas Linhas no Acre manterem uma cantina para lanches ligeiros no intervalo dos serviços (e geração de pequena receita de manutenção), são inúmeros os depoimentos que apontam diferentes necessidades individuais, de pessoa a pessoa, nem sempre envolvendo uma alimentação mais frugal nos dias de serviço espiritual. Entre eles, escolho este, do próprio mestre Irineu: "Ele dizia: 'você não pode fazer dieta de comida, você trabalha muito, derrama muito suor, tem de estar forte, tem de se alimentar muito bem'. Às vezes titio dizia: 'eu vou fazer dieta hoje, vai ter um serviço e desta vez eu vou passar só nessa comida'. Eu dizia: 'eu vou fazer como o senhor'. Ele dizia: 'não, pode te alimentar à vontade'"1092.

Voltando à sexualidade, lamento muito não ter conhecido mestre Irineu no mundo para, com simplicidade, perguntar–lhe sobre isso com franqueza! E nunca ter–lhe dirigido tal questão, nas poucas vezes em que estivemos juntos no astral, já que outros assuntos me ocupavam…

(Uma vez disseram: "Ah!, Luiz, quem dera a gente tivesse tido alguém como você… que pergunta tudo… quando o Mestre estava em matéria! A gente tinha Deus pertinho da mão, mas quase não perguntava nada para não incomodá–Lo!"1093. Ao que respondi: "Pois é, e com isso vocês não deixavam mestre Irineu cumprir melhor ainda sua missão, que também era a de responder às perguntas dos irmãos, todas elas, ensinando…".)

Mas carrego em mim segurança sobre o fato de que uma visão ainda tímida sobre sexualidade, bem como a delicada complexidade do tema, comprometem uma compreensão mais plena de aspecto tão essencial no caminho a Deus: a importância da sexualidade como expressão aberta da potencialidade do ser humano, se saudavelmente orientada para a completude do amor de quem quer bem ou para a ativação de meios mais sutis de percepção de si, do outro e mesmo da espiritualidade, na tentativa feliz de união e coesão.

Dois hinos adiante mestre Irineu canta:

"Estando nesta fortaleza,
onde me radeia o sol,
encostado a meu Império,
dono da força maior.
Dono de todo poder,
dono da força maior.
É ele é quem me ensina
para ensinar os menores.
Para ensinar os menores,
para todos aprender,
para sempre louvar a Deus
e saber agradecer"1094.

Aqui, é mais do que receber os ensinos, para ensinar: estar encostado sugere proximidade, contato efetivo e apoio.

(No trabalho de recobro de conteúdo foi deixado "radeia", ao invés de "irradia", acolhendo a expressão local.)

Ao introduzir a expressão "Império", mestre Irineu abre uma vertente de conhecimento que se reafirmará hinos à frente e se apresenta nos "viva!" bradados em todo serviço bailado:

"Viva o divino Pai eterno!
Viva a Rainha da floresta!
Viva Jesus Cristo Redentor!
Viva o patriarca São José!
Viva todos os seres divinos!
Viva o nosso chefe Império!
Viva toda a irmandade!
Viva o santo cruzeiro!"

(A partir da década de 80, práticas de proselitismo e de mescla de Linhas apuseram um nono viva, "viva os nossos visitantes!", que se manteve por anos1095 e, ao menos na casa de oração que dirigi, já foi suprimido, enquanto a vaidade gerou vivas desnecessários ao presidente ou ao vice–presidente do centro ou ao "dono" do hinário: "mas isso tudo já está no 'viva' à irmandade, não sabe?"1096.)

A quem mestre Irineu nomeia "chefe Império"? A expressão "dono da força maior" o associa à Rainha, como vimos no hino 94 ("estou com a força maior"); já pelo verso "é ele é quem me ensina", parece se referir a Jesus Cristo ou à Virgem Mãe, os quais, no decorrer do "O Cruzeiro Universal", se alternam como "transmissores dos ensinos", por força do Espírito Santo de Deus.

Ocorre que, como veremos adiante, tal "Império" é um "chefe" – e isso recoloca tudo, pois já não cabe entender a expressão como símbolo de uma qualquer das três Pessoas divinas ou de Maria.

Adiante discutiremos melhor tal nuance da arquitetura celestial, ao discutir Juramidam.

Mestre Raimundo Irineu Serra, Juramidam.

No hino seguinte mestre Irineu afirma sua devoção à Santa Cruz, até a eternidade:

"Minha Mãe, vamos comigo,
para sempre eterna luz,
para eu poder assinar
para sempre a Santa Cruz.
Esta cruz, no firmamento,
que radeia a santa luz,
todos que nela firmar
é para sempre, amém, Jesus"1097.

A seguir, canta:

"Eu canto aqui na terra
o amor que Deus me dá
para sempre, para sempre,
para sempre, para sempre.
A minha Mãe, que veio comigo,
que me deu esta lição:
para sempre, para sempre,
para sempre eu ser irmão.
Enxotando os malfazejos
que não querem me ouvir,
escurecem o pensamento
e nunca podem ser feliz.
Esta é a Linha do Tucum,
que traz toda a lealdade,
castigando os mentirosos,
aqui dentro desta verdade"1098.

Para quem já mirou "seu" Tucum, defronta-se um caboclo para quem a confusão ("o caminho torto, errado"1099, em outro hino) e o desrespeito à verdade ("os mentirosos", neste hino) não têm guarida.

O hino, enquanto "chamada" (invocação), é um dos mais potentes, a ponto de ser o único hino cantado nos "serviços de mesa", ou rituais de exorcismo ("enxotando os malfazejos"), por orientação direta de mestre Irineu.

Mas o hino nos traz inúmeros ensinamentos, além do fato de, até em momentos assim, serem enxotados apenas os "que não querem me ouvir", por respeito ao livre–arbítrio de todos os seres, até os malfazejos.

De muitos daimistas ouvi que "o trabalho de mestre Irineu é da Linha do Tucum", o que serviu para reforçar no correr dos anos a suposta aura panteísta ou "eclética" da doutrina daimista. É, também… mas não se sustenta a suposição de todo o trabalho ser de uma Linha só, quer ao analisar a base doutrinária e o próprio "O Cruzeiro Universal", quer pelo fato de uma Linha não estruturar uma Escola e, menos ainda, uma Tradição! Ao contrário, uma Tradição comporta várias Escolas e estas podem se desdobrar em Linhas distintas1100.

Quanto ao exorcismo, ao qual o hino alude ("enxotando os malfazejos"), ele está presente em toda a Escritura, assim como em todos os tempos e lugares.

No Novo Testamento há exemplos: "Tendo reunido os Doze, ele lhes deu poder e autoridade sobre todos os demônios e lhes concedeu curar as doenças"1101 ou "Algum de vós está doente? Mande chamar os anciãos da Igreja e que estes orem depois de tê–lo ungido com óleo, em nome do Senhor. A oração da fé salvará o paciente: o Senhor o porá de pé e, se tiver pecados, ser–lhes–ão perdoados"1102.

Diz o I Ching: "às vezes se tem que lidar com inimigos ocultos, influências impalpáveis que se ocultam nos mais obscuros recantos. De seu esconderijo, procuram sugestionar as pessoas. Nestes casos, é necessário persegui–los até os seus esconderijos mais secretos, para que se possa, então, identificar a natureza das influências em questão. Essa é a tarefa dos sacerdotes. Eliminá–los é o encargo dos magos. O caráter anônimo dessa conspiração exige um empenho especialmente vigoroso e incansável que, porém, encontrará ampla recompensa. Pois uma vez trazidas à luz e identificadas, essas influências furtivas perdem seu poder sobre as pessoas" 1103.

Determina a Cúria Romana: "os senhores bispos são solicitados a que vigiem para que – mesmo nos casos que pareçam revelar algum influxo do diabo, com exclusão da autêntica possessão diabólica – pessoas não devidamente autorizadas não orientem reuniões nas quais se façam orações para obter a expulsão do demônio, orações que diretamente interpelem os demônios ou manifestem o anseio de conhecer a identidade dos mesmos"1104.

Ensina a Escritura: "(…) não deis crédito a qualquer espírito, mas examinai os espíritos para ver se são de Deus; pois muitos profetas da mentira espalharam–se pelo mundo"1105.

Trechos de Kardec nos permitem ler o seguinte diálogo:

Então, trata–se sempre e todas as vezes, de auxiliar o irmão em sua tarefa de união interna, por meio de "reforma íntima", rogando a Deus força e luz para que o progresso se dê a contento.

O serviço, todavia, sofre distúrbios vários, causados por seres que, desencarnados ou encantados, almejam dirigir o processo, em detrimento do arbítrio do "possesso": seres levianos ou malévolos, orgulhosos ou desconfiados, ou ciumentos e sarcásticos, dependendo de seu nível de evolução, e os pseudo–sábios, dentre os mais envolventes e perigosos, pois instalam a confusão e a desunião interna (ou a incoesão externa) por meio de meias–verdades e rudimentos parciais de informação ou conhecimento.

Por isso "escurecem o pensamento" e "nunca podem ser feliz" (uma vez mais, no singular1107), razão pela qual devem ser "doutrinados", quando der e quiserem, ou "expulsos" da pessoa.

Canta um hino:

"Estalo com a mão direita
estalo com a mão esquerda
me defendo com a cruz
dos inimigos trapaceiros.
Malfazejos vêm chegando,
se preparem para apanhar.
Já não tem mais jeito,
o consolo é só chorar.
Corto para cá, corto para lá,
corto em todo lugar,
corto tudo que é ruim,
que não quiser se doutrinar"1108.

(Como exemplo contemporâneo das alterações que ocorrem, desvirtuando o ensinamento dos hinos, estava eu uma tarde conferindo com o Tufi o seu próprio hinário e, ao chegarmos a este hino, ele afirmou: "é 'que não quiser se doutrinar'", embora o povo insista em cantar 'quem não quiser se doutrinar'". Indiretamente, ele me falava da tendência humana ao proselitismo…)

A introdução deste tema – exorcismo dos "malfazejos"– na última terça parte do "O Cruzeiro Universal" pode fazer pensar em ressurgimento do animismo ou de formas menos bem desenvolvidas de cultuar a espiritualidade, aquelas que dependem de entidades ou objetos–ídolo. Todavia, é precioso lembrete para mestre Irineu e, por meio dele, para nós: em todos os níveis, em todos os momentos, pouco importa em que estágio se esteja do arco para dentro, já no caminho do retorno a Deus, pouco importa quanto já se tenha caminhado no recobro e integração de memórias, pouco importa quanto se pôde obter de conhecimento e compreensão, os desafios da vida encarnada e as armadilhas da vida espiritual estão presentes e podem se manifestar, razão pela qual se necessita contínua vigilância.

Canta um hino:

"Quando eu fui abrindo os olhos,
vi as luzes clarear.
Estava dentro de um salão
junto com meu general.
Aí tinha um trapaceiro
querendo me conduzir.
Eu disse ao meu general
e ele não quis consentir.
Ele foi me abraçando
para com ele eu seguir.
Meu general me segurou,
disse: este veio foi pra aqui.
Eu digo aos meus irmãos
que todos nós podemos crer:
que dentro do poder divino
tem tudo para nós ver"1109.

Além disso, como se vê em todo o Novo Testamento, tais exorcismos, e outras curas, quando feitos, nem merecem grande destaque, pois não são o mais importante – são apenas sinais da força benfazeja do amor de Deus e "é por meio deles que se abre o caminho à mensagem dos Arcanjos e dos Anjos"1110.

No que toca a mim, ano e meio após ter firmado a Casa de Oração Sete Estrelas, em um serviço recebemos pessoal que veio do "Céu do Mapiá" para conhecer a casa e eu pude compreender no astral, graças a Deus, a dureza do que viria, de tantos e tais, os interesses contrariados.

Ao final do serviço, chamei meus assistentes e pedi:

Quem caiu, todavia, foi um de meus cachorros – grande guarda! –, vindo a morrer um ano após, preso de convulsões que nunca mais o abandonaram. O outro, um pastor–alemão, carregou até à morte uma ferida na pata dianteira, nunca cicatrizada nem nunca arruinada de vez.

Por isso mestre Irineu sempre ensinava: "tenham um bicho em casa, nem que seja um pinto… Ele ajuda a 'segurar' o que vem de ruim!"1111.

De outra vez, recebemos dois irmãos: ele, perdido na cocaína, ela, jovem, bela e prostituta. Ao meio do serviço, súbito mirei um ambiente tosco, choça à noite, coalhado de seres escuros, rústicos e alumiados por tochas ou lamparinas. "Surgi" no meio de todos e minha chegada gerou desconforto e rumores, com que o "chefe" daquele povo veio, carrancudo, em minha direção.

Mal se postou à minha frente, de mim saiu a voz:

Ele "recuou" um passo, tudo sumiu e eu me vi de novo em minha cadeira.

Sei que algum tempo após ela decidiu deixar a prostituição, mesmo sem profissão definida e com uma filha para sustentar, e "cortar um doze" para se reformar, adotando uma religião e, até onde sei, vencendo a batalha…

Dois hinos à frente, mestre Irineu canta o mar sagrado:

"De longe, eu venho de longe,
das ondas do mar sagrado,
para conhecer os poderes
da floresta e Deus amar.
Eu sigo neste caminho,
ando nele dias inteiros
para conhecer o poder
e a santa luz de Deus verdadeiro.
No poder de Deus verdadeiro
é preciso nós ter amor,
nas estrelas do firmamento
e em tudo que Deus criou"1112.

Que precisa descrição!

Pois entoa o salmista:

"Aleluia!
Dos céus, louvai o Senhor: Louvai–o nas alturas;
louvai–o, vós, todos os seus anjos;
louvai–o, vós, todo o seu exército;
louvai–o, sol e lua;
louvai–o, vós, todas as estrelas brilhantes;
louvai–o, vós, os mais altos dos céus,
e vós, as águas que estais sobre os céus"1113.

Ambos cantam, cada qual a seu modo, "as águas que estais sobre os céus", o mar sagrado…

O movimento ensinado é duplo: "eu venho de longe, das ondas do mar sagrado", emanando da eternidade; e "eu sigo neste caminho, ando nele dias inteiros", caminhando para conhecer Deus, a partir da encarnação.

O próximo hino, o 111, é um dos únicos três que têm bailado misto, entre todos os hinários da base doutrinária: parte da estrofe é bailada em ritmo de marcha e o restante o é em ritmo de "valseado", o que obriga a ter atenção redobrada no bailado e nos faz perguntar: por que apenas estes?

Os outros dois são "Linha do Tucum", o qual vimos atrás, e "Laranjeira", que é o 60o :

"Cada um tem um cabedal,
de acordo ao que Deus lhe dá,
para viver neste mundo
é preciso procurar.
Laranjeira carregada
de laranjas boas:
assim é algumas pessoas.
Vou vivendo e vou dizendo,
de acordo ao que vai chegar:
o ouro que tem na Terra
é a luz que brilha mais.
Laranjeira carregada
de laranjas boas:
assim é algumas pessoas".

(Os versos "o ouro que tem na terra é a luz que brilha mais" também não encontram consenso: a ganância, que imperaria, já que "de acordo ao que vai chegar"?)

No hino 111, então, "Estou aqui", surge no "O Cruzeiro Universal" um ente que permeia toda a doutrina daimista e que, na época em que brotou da boca de mestre Irineu, já fora cantado em hinos de outros hinários: Juramidam.

"Estou aqui,
eu não estando, como é?
Eu penso na verdade,
me vem tudo o que eu quiser.
A minha mãe me trouxe,
Ela deseja me levar.
Todos nós temos a certeza
deste mundo se ausentar.
Eu vou contente,
com esperança de voltar.
Nem que seja em pensamento
tudo eu hei de me lembrar.
Aqui findei,
faço a minha narração,
para sempre se lembrarem
do velho Juramidam"1114.

(De forma sutil, três hinos se entrelaçam: este, "Linha do Tucum" e "Amigo velho": os três vieram com passo irregular de bailado (embora no "Amigo velho" mestre Irineu tenha retirado o "passo cruzado", por entendê–lo difícil1115) e, nos três, entidades de alta espiritualidade surgem no hinário: "Tucum", o "patriarca São José" e "Juramidam".)

A versão que um dia foi registrada, segundo a qual "mestre Irineu consagrou uma das chefes de cura do Alto Santo como a outra metade de Midam"1116, não se sustenta, até porque não há "metades" de Juramidam

Ao contrário, há indicativos de se tratar do patriarca1117 de uma família do astral – ou "ordem angélica"? –, o "general Juramidam".1118

O que não é o mesmo que dizer que "Irineu Serra foi Jesus Cristo enquanto esteve na terra, mas continua sendo visto e reconhecido na figura do General Juramidam no plano mais elevado do mundo astral"1120, ou afirmar que Juramidam é "outro nome" de Jesus Cristo, como se insiste arduamente à busca de validar a "nova religião amazônica".

Com esta intenção, e contrariando frontalmente os ensinos de mestre Irineu – "Jesus Cristo e Juramidam não são o mesmo, é o que o Mestre ensinava, não sabe?"1121 –, afirmou–se a partir de 1992 que Sebastião Mota de Melo, então já falecido havia dois anos, teria suprimido um verso de seu hino 39 (diz–se que recebido quando mestre Irineu estava ainda no mundo e o velho Mota trabalhava a seu lado, o que é um contra–senso frente ao grau de discordância quanto ao ensinamento de mestre Irineu…) e que tal informação seria a "compreensão de tudo"1122:

"O nome está mudado
para não dar confusão:
mudou de Jesus Cristo,
agora é Juramidam".

Mas Mestre Irineu nunca afirmou isso!

Ao contrário – e para não ficarmos apenas na declaração de dona Percília, vista atrás, por mais abalizada que seja –, Aquele que se manifesta no Mestre é preciso e cristalino em vários hinos ao afirmar que "Jesus Cristo me mandou, para sempre amém, Jesus"1123, "Jesus Cristo me mandou, para eu viver aqui"1124, "me lembrar de Jesus Cristo"1125,

"A nossa Mãe, mais Jesus Cristo,
a ele lhe ordenou
para cumprir esta missão
como mestre ensinador"1126

ou

"Essa estrela que nos guia
que o divino Pai mandou,
com a sempre Virgem Maria
e Jesus Cristo Redentor"1127

ou

"Jesus Cristo é quem nos manda,
Jesus Cristo é quem nos dá,
mandou o nosso mestre
aqui para nos ensinar"1128

ou

"Jesus Cristo Redentor
é o dono destes ensinos,
entregou ao nosso mestre
para seguir nesse destino"1129

ou

"Todos nós devemos ter
esta consagração,
que Ele foi para o Vosso trono
e deixou o Mestre na missão"1130

ou

"Estou aqui, estou aqui.
Deus do céu, quem determina.
Estou encostado a meu mestre,
a Jesus Cristo e à Rainha"1131.

E, se não bastasse,

"Deus na frente, Deus na paz,
nas alturas onde Ele está.
Vou viajando com Deus,
um dia eu hei de chegar".

"Deus na frente"?, "vou viajando com Deus"?, alguém poderia perguntar…

Para ser respondido por mestre Irineu na estrofe seguinte:

"Jesus Cristo vai comigo,
vai na minha companhia,
para um dia eu entrar
dentro da Soberania"1132.

Deus Jesus.

Seja quem for que esteja canto–ensinando, então, trata–se de fato bem mais complexo de entender do que afirmar ter havido "reencarnação de Jesus Cristo", o que pareceria simplificar tudo mas é insensato!

Mesmo com hinos cantando:

"Jesus Cristo está na terra,
foi Deus do céu foi quem mandou
para Ele vir nos ensinar
a doutrina do Salvador"1133

ou

"Jesus Cristo é meu mestre,
foi Ele quem me ensinou.
Dai–me força, dai–me amor,
que Vós é o meu professor"1134

ou

"Jesus Cristo Salvador
veio ao mundo para ensinar,
dando a luz aos Vossos filhos
para todos enxergar"1135,

não se trata de "reencarnação de Jesus Cristo", pois o homem Jesus não foi animado por alma que vinha de encarnação e poderia ir a mais uma, e tampouco foi somente um avatar entre outros, como quer a cultura nova–era (apropriando–se de parcela do pensamento hinduísta), pois nele o Verbo, Filho eterno e Unigênito de Deus Uno e Trino, se fizera humano em Maria.

Não nos esqueçamos: "Eu sou um filho de Deus, eu sou é um mensageiro…"1136, canta o Mestre, através do qual o Paráclito se manifesta:

Jesus Cristo veio ao mundo
terminou o que veio fazer.
Entregou ao nosso mestre,
ele tem o mesmo poder"1137.

Um hino assegura com nitidez a distinção entre Jesus Cristo e o "mestre ensinador" que habita mestre Irineu, preparando–o para manifestar o Paráclito:

"Sou eu, sou eu, sou eu
que minha Mãe me mandou,
para mim viver aqui
com meu mestre ensinador.
Eu encostado a meu mestre,
junto à minha Mãe estou,
junto a Jesus Cristo
e ao nosso Pai criador.
Este planeta que nos guia
é quem nos traz todos primores
da nossa Mãe e de Jesus Cristo,
e do nosso Pai que nos mandou.
Soberano é o nosso Pai
e Jesus Cristo Redentor.
E a Virgem Mãe puríssima
e o nosso mestre ensinador"1138.

Pois, "que uma pessoa Divina seja enviada a alguém pela graça invisível significa um novo modo de habitação dessa Pessoa e a origem que ela possui de uma outra. Por isso, convindo ao Filho e ao Espírito Santo habitar na alma pela graça e proceder de um outro, a ambos convém ser enviados invisivelmente (…) Deve–se dizer que a graça torna a alma conforme a Deus. Assim, para que uma Pessoa divina seja enviada a alguém pela graça, é preciso que a alma seja assimilada à Pessoa que é enviada por algum dom da graça. E porque o Espírito Santo é Amor, é o dom da caridade que assimila a alma ao Espírito Santo. Por isso, é pelo dom da caridade que se considera a missão do Espírito Santo. O Filho é o Verbo, não qualquer um, mas o Verbo que espira o Amor: 'o Verbo que procuramos declarar', diz Agostinho, 'é um conhecimento com amor'. Portanto, não há missão do Filho por um aperfeiçoamento qualquer do intelecto, mas somente quando ele é instruído de tal modo que irrompe a afeição de amor"1139.

Desculpe–me, não pude resistir! Santo Tomás de Aquino é tão precioso neste conceito, como, aliás, o é em tantos, que repito suas palavras: "Convindo ao Filho e ao Espírito Santo habitar na alma pela graça e proceder de um outro, a ambos convém ser enviados invisivelmente (…) Deve–se dizer que a graça torna a alma conforme a Deus. Assim, para que uma Pessoa divina seja enviada a alguém pela graça, é preciso que a alma seja assimilada à Pessoa que é enviada por algum dom da graça. E porque o Espírito Santo é Amor, é o dom da caridade que assimila a alma ao Espírito Santo. Por isso, é pelo dom da caridade que se considera a missão do Espírito Santo. O Filho é o Verbo, não qualquer um, mas o Verbo que espira o Amor: 'o Verbo que procuramos declarar', diz [santo] Agostinho, 'é um conhecimento com amor'. Portanto, não há missão do Filho por um aperfeiçoamento qualquer do intelecto, mas somente quando ele é instruído de tal modo que irrompe a afeição de amor":

"A febre do amor
é preciso compreender.
Trazer sempre na memória
este divino poder"1140.

(Ao falar da união que internamente dentro se processa, relata santa Teresa de Ávila que "não sei explicar como é essa oração a que chamam união, nem o que é. Na teologia mística, ela é explicada, enquanto eu não tenho palavras para dizê–lo, nem sei bem o que é a mente, nem sei diferenciar entre alma e espírito; tudo me parece uma só coisa, embora a alma por vezes saia de si mesma, como se fosse um fogo que está ardendo e se incendeia, e alguma vezes esse fogo aumenta com ímpeto e essa chama se eleva muito acima do fogo, mas nem por isso se distinguem: é a mesma chama que está no fogo"1141.)

Para tanto, Raimundo Irineu Serra foi transformado pela Graça, de forma a servir ao acolhimento manifesto do Paráclito, pois "se uma Pessoa divina existe de um modo novo em algo, ou se encontra possuída no tempo, não é em razão de uma mudança sua, mas de uma mudança na criatura"1142.

No hino seguinte mestre Irineu retoma os temas centrais da doutrina:

"Meu Pai, meu Pai,
me dá o teu amor
para eu ser filho de Vós
aqui na terra, aonde estou.
Minha Mãe, minha Mãe,
que tudo que Vós me dá
para eu viver neste mundo
e aos meus irmãos todos abraçar"1143.

Pela primeira vez se dirige a uma das Pessoas divinas na segunda pessoa do singular – "teu" –, além de usar o verbo no imperativo – "me dá" – o que não ocorre em nenhum outro hino da base doutrinária (e em hino algum de outro qualquer daimista!).

E no hino seguinte ele chega à "casa" pela primeira vez, quando retoma o conceito "Império":

"Quando eu cheguei nesta casa,
estrondo de palmas me deram.
meu chefe me recebeu,
o dono de todo o Império"1144.

A despeito de no hino 106 mestre Irineu ter cantado "estando nesta fortaleza, onde me radeia o sol, encostado a meu Império, dono da força maior. Dono de todo poder, dono da força maior, é ele é quem me ensina para ensinar os menores", a expressão "chefe Império" não parece se referir diretamente a nenhuma das Pessoas de Deus Uno e Trino ou à Virgem Maria: nos viva!"viva–se" ao divino Pai eterno, à Rainha da floresta, a Jesus Cristo, ao patriarca São José, a todos os seres divinos e ao "nosso chefe Império", "categoria" a "categoria", na minuciosa arquitetura simbólica do astral.

Quem é, então, o "chefe", o "velho Juramidam", "o dono de todo o Império", "dono da força maior"1145?

Canta um hino:

"O chefe que veio à terra
como mestre ensinador,
recebeu esta missão
que a Virgem Mãe lhe entregou"1146.

Especulo, sem entrar nos pormenores da hierarquia angelical dentro do governo divino, por meio do qual a ciência e a caridade de Deus se manifestam aos homens: seria Juramidam um "general" maior nas hostes de Deus1147, um Principado ou Arcanjo1148 encarregado de missão maravilhosa1149?

A missão de, pela Graça e o poder de Deus, em uma missão mariana, transformar Raimundo Irineu Serra e prepará–lo1150 para o acolhimento e habitação do Paráclito.

Cabe recordar que em 1916, antes das seis aparições da Mãe de Deus em Fátima, aos pequenos pastores, os videntes foram visitados várias vezes por um anjo, "a fim de prepará–los para a visita da Virgem"1151.

Neste sentido, o de Juramidam ter sido enviado em missão mariana, já não bastasse o hino:

"Esta semente boa
que trouxe a nossa Rainha,
para vir nos ensinar,
para nós seguir nesta linha"1152,

encontra–se claro indicativo em um hino de Germano Guilherme, no qual é retomado o mote "estou na terra, estou na terra", afirmado por mestre Irineu no hinário "O Cruzeiro Universal"1153:

"Estou na terra, estou na terra
minha Mãe é quem domina.
Ela é minha protetora,
Ela domina e é Rainha.
Este divino poder
o divino Pai talhou,
para a sempre Virgem Maria
e Jesus Cristo Redentor"1154.

Então houve um "poder" talhado por Deus e posto a serviço da Virgem Maria e de nosso Senhor, Jesus Cristo!

O que é reafirmado em outro hino, o 23o( de Antonio Gomes:

"Este mestre que está aqui
entre nós, ele é uma flor
com todo o poder na mão,
de Jesus Cristo Redentor.
Desde do seu nascimento
que ele trouxe o seu valor,
com a Virgem Mãe puríssima,
que o divino Pai talhou".

Por isso ele canta ser "filho da verdade do poder superior", isto é, como todos os seres, filho do Filho eterno – já que nenhuma criatura procede do Pai senão pelo Verbo, no qual tudo foi disposto1155 –, o Filho eterno que é a Verdade1156 que procede do Pai e um dia se fez homem em Jesus, pelo Espírito Santo, em Maria.

Sendo por isso, também, a sua obediência e seu louvor perpétuos à Virgem Maria, a Imaculada Conceição, Protetora da Missão de mestre Irineu e "Senhora dos anjos e dos homens"1157.

"Na véspera de São Sebastião, no primeiro ano em que fui priora na Encarnação, ao começar a Salve, vi na cadeira prioral, onde está nossa Senhora, descer com grande multidão de anjos a Mãe de Deus e pôr–se ali (…) Parecia–me ver anjos acima das cornijas dos cadeirais e por sobre os parapeitos, mas não em forma corporal, porque era visão intelectual (…) Ela esteve assim todo o tempo da Salve e disse–me: 'Bem acertaste em pôr–Me aqui; Eu estarei presente aos louvores que derdes ao Meu Filho e os apresentarei a Ele'. Depois disso, fiquei na oração, que tenho, de estar a alma com a Santíssima Trindade; e parecia–me que a Pessoa do Pai me aproximava de Si e dizia palavras muito agradáveis. Entre elas, disse–me, mostrando o quanto me queria: 'Eu te dei o Meu Filho, o Espírito Santo e esta Virgem. Que podes tu dar a Mim?"1158.

Mas por que "é ele quem me ensina", se o ensino até aqui foi transmitido pela Virgem Maria ou pelo Filho eterno, em Jesus Cristo, Redentor, senão pelo fato de o Paráclito por ele se revelar?

Antonio Gomes parece se referir a Jesus Cristo como Príncipe Imperial, ao cantar:

"Oh! meu Príncipe Imperial,
Filho da Virgem Maria,
eu aqui a Vós me entrego
junto com minha família"1159.

E João Pereira reafirma o conceito:

"Das três fontes nobres
eu tenho muito o que contar:
um Rei e uma Rainha
e um Príncipe Imperial"1160.

Mas se Jesus Cristo não é Juramidam, como mestre Irineu ensinava, os hinos o indicam e a arquitetura dos "viva!" o demonstra, quem é o "chefe Império", que em mestre Irineu se manifesta?

Nada explícito se encontra referente a Juramidam nos hinários de Germano Guilherme e de dona Maria Marques "Damião", deixando aberta a questão, embora em dona Maria "Damião" e Antonio Gomes respectivamente se cante:

"Sou um chefe habitado
e sei aonde eu habito"1161,

e

"O chefe que veio à terra
como mestre ensinador,
recebeu esta missão
que a Virgem Mãe lhe entregou"1162.

O que faz crer que o "chefe" é o dúplex de mestre Irineu, Juramidam, guiando–lhe os passos e transformando–o para poder ser também habitado pelo Paráclito.

A noção de dúplex, ou "duplo espiritual"1163, já mencionada anteriormente neste relato, percorre universalmente as concepções religiosas, da pajelança indígena americana ao candomblé africano, do xamanismo asiático ao vedantismo e budismo hindus, do judaísmo ao cristianismo: trata–se da coexistência simultânea na mesma pessoa – em alguns indivíduos, por períodos isolados; em outros, pela vida inteira – do espírito que a anima e de um ser espiritual, sem necessariamente configurar possessão, em respeito ao livre–arbítrio.

Por isso há a expressão "aparelho", na doutrina daimista1164.

A isso também aludem os orixás "de cabeça" do candomblé, que "definem e determinam" alguém, os "guias", na umbanda, que "dirigem" desde os mais mínimos detalhes cotidianos de seus "cavalos" (embora, aqui, no geral, costume haver perda de consciência), e também os anjos, como se vê nos Atos dos Apóstolos1165, pois "os homens são iluminados pelos anjos não somente a respeito do que crer, mas também do que agir"1166.

Neste sentido, ensina santo Agostinho: "quando um espírito se une a outro, é possível que comunique a ele o que sabe, graças às imagens que possui, seja levando–o a entendê–las, seja a aceitá–las como quem aprende"1167.

Santo Tomás de Aquino vai adiante: "deve–se dizer que o anjo que causa a visão imaginária às vezes ilumina ao mesmo tempo o intelecto, para que este conheça o que é significado por estas imagens, e então não há engano algum"1168, porque, "quando é preciso que algum anjo faça alguma coisa para determinada criatura corpórea, então o anjo aplica novamente a esse corpo sua potência ativa, e desse modo o anjo começa novamente a aí estar"1169.

De qualquer forma, todos os serviços espirituais da doutrina daimista são encerrados com a seguinte elocução:

"Em nome de Deus Pai,
e da Virgem, soberana Mãe,
de nosso Senhor, Jesus Cristo,
do patriarca São José
e de todos os seres divinos da corte celestial,
com a ordem de nosso chefe Império, Juramidam,
está encerrado o nosso trabalho de hoje [ou desta noite].
Louvada seja nossa Mãe, Maria santíssima,
para sempre seja louvada,
amém, Jesus, Maria e José"1170.

Louva–se, assim, a Padroeira da missão1171, Maria santíssima, e reverencia–se o dúplex de mestre Irineu, chefe Império, Juramidam, o Mensageiro:

"O general Juramidam,
o seu trabalho é no astral.
Entra no reino de Deus
que tem força divinal"1172.

Veja: não é Deus, "entra no reino de Deus".

(Com o tempo, antepôs–se um "Louvado seja Deus nas alturas" à louvação a Maria santíssima, assim como se dispôs um "sobre toda a humanidade" após a louvação a Ela1173.)

Já pertinho do que poderia parecer o final do hinário "O Cruzeiro Universal", mestre Irineu canta novamente estar "encostado", mas desta vez à Imaculada Conceição e a Deus (nesta ordem) e não mais ao "Império":

"Encostado à minha Mãe
e meu Papai, lá no astral,
para sempre eu quero estar,
para sempre eu quero estar,
Minha flor, minha esperança,
minha rosa do jardim.
Para sempre eu quero estar
com minha Mãe juntinho a mim.
Eu moro nesta casa
que minha Mãe me entregou,
eu estando junto com Ela
sempre dando o seu valor.
Fazendo algumas curas
que minha Mãe me ordenou,
de brilhantes pedras finas,
para sempre aqui estou"1174.

Nele, mestre Irineu retoma o tema "flor do jardim", reconhece "morar nesta casa que minha Mãe me entregou" (seu corpo material e temporal, templo de manifestação viva e dádiva de Deus, pela Virgem Maria, a Rainha do mundo) e reafirma sua obediência à missão de curar1175, ao pregar a salvação, embora aborde o tema de modo bastante trivial – "fazendo algumas curas" –, como asseverando não ser isso o principal.

E se é "encostado à minha Mãe e meu Papai, lá no astral", pode também sê–lo em vária medida: "mantive–me assim por algum tempo, vindo–me um arroubo de espírito de tamanho ímpeto que não tive como resistir–lhe. Tive a impressão de estar no céu, tendo visto ali, em primeiro lugar, meu pai e minha mãe. E vi coisas tão sublimes – num espaço de tempo breve como rezar uma Ave Maria – que fiquei bem fora de mim, considerando aquilo uma graça grande demais para mim"1176.

Quando eu comecei a tomar daime, fazia um mês e meio que minha mãe passara (meu pai fizera sua passagem mais de dez anos antes). Na manhã em que eu fora cuidar de seu sepultamento, em uma breve cochilada eu pudera vê–la saltitando em uma campina toda verde, coalhada de flores, o que me dera paz quanto à sua destinação; então, em meu primeiro serviço bailado, ainda nem fardado, foi–me dado recebê–la novamente, sorrindo para mim.

Menos de um ano após, no "Céu do Mapiá", em um trabalho diurno de dia inteiro a miração abriu e eu pude ver sobre nós, quase 400 pessoas bailando, uma quantidade enorme de seres nos assistindo do astral, sentados como que em uma galeria de teatro, "lá em cima", enquanto nós, "aqui em baixo", bailávamos; ao meio de todos vi papai e, em um cadeirão, bem mais ao alto, mestre Irineu, Juramidam.

O próximo hino, uma marcha bastante acelerada, relata uma batalha no astral:

"Entrei numa batalha,
vi meu povo esmorecer,
temos que vencer
com o poder do Senhor Deus.
Ah! Virgem Mãe,
com o poder que Vós me dá,
me dá força e me dá luz,
não me deixa derribar.
O divino Pai eterno
e a Virgem da Conceição,
todo mundo levantou
com suas armas na mão.
Ah! Virgem Mãe,
com o poder que Vós me dá,
me dá força e me dá luz,
não me deixa derribar"1177.

Este hino sempre me pareceu "desencaixado", pois tem um andamento e uma temática que tomam a todos de surpresa no salão e antecede o hino de encerramento da penúltima parte do "O Cruzeiro Universal", quando mestre Irineu já está amorosamente "encostado" em sua Mãe e seu Papai no astral e se prepara para afirmar ser "filho do poder" e cantar os "hinos novos": que "batalha" ainda há por ocorrer?

Uma vez mais dona Percília soube explicar: o hino veio em 1964 e "essa batalha foi no tempo da Revolução. Na época da revolução dos militares, que estava aquele 'baldear' no país, aí saiu esse hino, não sabe? Essa batalha acalmou o negócio, entendeu?"1178.

(No mesmo ano, Germano Guilherme fez sua passagem, doze anos após João Pereira tê–lo feito).

Por fim, o hino imediatamente anterior aos "hinos novos":

"Sou filho do poder
e dentro desta casa estou,
fazendo os meus trabalhos 1179
que minha Mãe me ordenou.
Eu pedi a meu Pai,
me deu o consentimento:
trabalhar para os meus irmãos,
aqueles que estão doente.
Confessa a consciência
e alegra o teu coração,
que esta é a verdade
que eu apresento aos meus irmãos"1180.

Nele, mestre Irineu (será Aquele, cantando de dentro de seu coração?), após retomar o tema da "casa" e de sua missão de servir ("trabalhar para os meus irmãos, aqueles que estão doente" – uma vez mais, no singular1181), resume em uma frase a doutrina daimista, replantio da doutrina cristã: "confessa a consciência e alegra o teu coração".

Pois, como canta Antonio Gomes,

"Não temos que reclamar,
tudo o que Deus faz é bom"1182.