de "Eu peço a Jesus Cristo" a "Professor"

Ultrapassado o parêntese teológico, retomemos o caminho daimista, como percorrido e ensinado por mestre Irineu para quem quiser.

No hino seguinte ele pede a santa luz à Trindade (Trindade, nos termos em que vimos no capítulo anterior),

"Eu peço a Jesus Cristo,
eu peço à Virgem Maria,
eu peço ao meu Pai eterno:
Vós me dê a santa luz",

louva as entidades que o ajudaram em sua missão,

"Eu dou viva à Virgem Mãe!
Viva suas companheiras!
Nos proteja neste mundo,
Vós, como Mãe verdadeira",

reafirma a manifestação generosamente igual do Cristo de Deus entre nós – "O Verbo era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem"820 –,

"O sol que veio à terra
para todos iluminar:
não tem bonito e nem feio,
ele ilumina todos igual",

e, no que parece ser só a celebração da inter–relação simbólica do feminino ("lua") com os aspectos materiais da existência ("terra"), uma vez mais louva nossa Senhora:

"A lua tem três passagens,
todas três nela se encerra.
É preciso compreender
que ela é quem domina a terra"821.

Que precioso!"A lua tem três passagens, todas três nela se encerra": Três em Maria Virgem, Mãe de Deus, Senhora dos anjos e Rainha do mundo.

E apresenta uma nova possibilidade de entendimento: pela primeira vez afirma receber "força" pela Rainha, uma noção que vai se intensificar no correr do restante do hinário:

"A força da floresta,
a força do astral,
a força está comigo:
a minha Mãe é quem me dá ".

Para no próximo hino ampliar tal conceito – a Luz é de Deus, mas a recebe por meio da Medianeira –, ao cantar:

"Eu vou cantar, eu vou cantar
de joelhos em uma cruz.
Vou louvar ao Senhor Deus,
foi quem me deu esta luz.
Esta luz é da floresta,
que ninguém não conhecia.
Quem veio me entregar
foi a sempre Virgem Maria.
Quando Ela me entregou
eu gravei no coração,
para replantar santa doutrina
e ensinar aos meus irmãos.
Eu agora recebi
este prêmio de valor
de São José e da Virgem Mãe
de Jesus Cristo Redentor"822.

Nesse hino, o trabalho de recobro de conteúdo eliminou uma vírgula, que estava demais, pois antes se cantava "de São José e da Virgem Mãe, de Jesus Cristo Redentor".

No hino seguinte mestre Irineu introduz uma inovação teológica, ao cantar que Jesus e João foram batizados no rio Jordão, mas não a explica melhor e nem nunca consegui, só ou com irmãos, chegar a um melhor entendimento:

"Toda a verdade afirmou,
gravou no coração.
Ambos foram batizados
no rio de Jordão.
No rio de Jordão
ambos estiveram em pé;
um é filho de Maria,
o outro é filho de Isabel"823.

Neste hino mestre Irineu menciona a avó de Jesus Cristo, mãe de Maria, "Senhora Sant'Ana" (da qual sabemos não pelo Novo Testamento e, sim, por textos apócrifos como o "Proto–Evangelho de Tiago"), na única menção a ela em todos os hinos da base doutrinária.

E pela primeira vez parece contradizer frontalmente a Escritura!

Embora na exegese feita pelos principais teólogos e estudiosos dos textos sagrados se encontrem tensões e contraposições – como se vê entre santo Tomás de Aquino e santo Agostinho, além de Orígenes, santo Ambrósio, santo Alberto Magno, John Duns Scotus e santo Boaventura, dentre outros –, sempre se trata de interpretação a partir de distintos pontos de vista.

Isto se deu até mesmo entre Pedro e Paulo, nas primeiras décadas da cristandade, no desenvolvimento de sua missão evangélica.

Pois, como afirmou Egídio de Roma, discípulo de santo Tomás de Aquino, "não se deve impor a uniformidade de opiniões a todos os nossos discípulos, pois nossa inteligência não deve ser submetida à inteligência de um homem, mas só à tutela do Cristo"824.

Contudo, nunca se trata de alteração do conteúdo da Escritura, por acréscimo ou subtração, como parece ocorrer aqui – "ambos foram batizados"–, e há quem informe que também no ritual daimista de batismo, feito sempre ao nascer do sol825 – no qual, aliás, não se canta hinos, como se inventou mais tarde –, tal dito era reafirmado por mestre Irineu: "Assim como Jesus batizou João no rio de Jordão, eu te batizo [fulano] para seres cristão"826.

(Existem divergências sobre a elocução final da forma de batizar adotada por mestre Irineu: ao passo que há quem diga que ele pronunciava "em nome do Pai, do Filho da Virgem Mãe amantíssima e do divino Espírito Santo"827, há quem informe que a elocução original seguia fielmente o Evangelho828: "em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo"829, tendo sido aposto, depois, com o tempo, a expressão "da Virgem Mãe amantíssima" e o adjetivo "divino".)

Voltemos ao batismo de Jesus, porém, pois este hino nos traz a um assunto relativamente controverso no Novo Testamento.

Dos quatro evangelistas, três retratam o episódio em detalhes. João relata o ocorrido como narrador do testemunho de João Batista830. Já Lucas e Marcos, respectivamente, registram que "Ora, ao ser batizado todo o povo, Jesus, batizado ele também, rezava; então o céu se abriu"831 e "(…) João, o Batizador, apresentou–se no deserto, proclamando um batismo de conversão para o perdão dos pecados (…) Ora, naqueles dias, Jesus veio de Nazaré na Galiléia e fez–se batizar por João no Jordão"832.

Mateus, no entanto, vai mais longe, pois, neste Evangelho Jesus se opõe a batizar João: "Então chega Jesus, vindo da Galiléia ao Jordão, junto a João, para fazer–se batizar por ele. João quis opor–se a isto: 'Eu é que preciso ser batizado por ti', dizia, 'e és tu que vens a mim'? Mas Jesus replicou–lhe: 'Deixa, agora é assim que nos convém cumprir toda a justiça'. Então, ele o deixa fazer"833.

A que, então, mestre Irineu poderia estar se referindo ao afirmar que "ambos foram batizados no rio de Jordão"?

Mas se todos os evangelistas registram apenas o batismo de Jesus por João Batista, João afirma terem dito ao Batista: "Rabi, aquele que estava contigo além do Jordão, aquele sobre quem deste testemunho, eis que se põe também a batizar e todos vão ter com ele!"834.

Jesus, então, batizava? Teria batizado João, o Batista?

Pouco adiante, contudo, o mesmo Evangelho afirma: "Na verdade, Jesus mesmo não batizava, mas os seus discípulos"835.

Mas, curiosamente, em nenhum dos Evangelhos há registro de qualquer discípulo realizando batismos, o que só ocorrerá após a ressurreição de Jesus, como relatado nos Atos dos Apóstolos. Antes, o que Jesus ordena aos seus discípulos é a pregação da boa nova ("euaggélion") e o que se registra é a realização de exorcismos e curas pelos apóstolos: "enviou–os [os Doze] a proclamar o Reinado de Deus e a fazer curas"836 e "Eles partiram e proclamaram que era preciso converter–se. Expulsavam muitos demônios, faziam unções com óleo em muitos doentes e os curavam"837.

Assim, nunca pude entender o "ambos foram batizados" – embora, como ensina René Laurentin, perito do Concílio Vaticano II e membro da Pontifícia Comissão Teológica de Roma, "resolver a ambigüidade seria esvaziar o mistério"838.

No hino seguinte, mestre Irineu canta o delicado equilíbrio necessário entre não se apegar às exigências da matéria, que é transitória, e a um tempo só não desrespeitá–la, já que estamos – ele, inclusive – encarnados:

"Todo dia eu canto e peço
para limpar meu coração,
para seguir neste caminho
e deixar a ilusão.
Sempre eu digo aos meus irmãos
que tratem o tempo mais sério,
que o tempo não engana
e não tem dó desta matéria"839.

A seguir, mestre Irineu pede o pão do Senhor:

"Vós me dê o Vosso pão,
o Vosso ensino divino,
Vós me dê a santa luz
para eu seguir o meu destino"840.

Embora já se tenha afirmado insensatamente que "o iniciado bebe a oaska e é então alimentado com pão divino (o cipó) e água divina (a folha)"841, uma vez mais a fina contextura teológica da obra de mestre Irineu – torno a lembrar, homem com nenhum preparo cultural acadêmico –, se revela: "o Vosso pão, o Vosso ensino divino".

Pois a Escritura menciona o "pão do céu" em dois contextos diferentes.

O primeiro é o visto no Antigo Testamento, como indicador do poder salvador de Deus no êxodo dos israelitas pelo deserto, socorrendo o Seu povo: "Para alimentá–los, fez chover o maná, deu–lhes o trigo dos céus: cada um comeu o pão dos Fortes, enviou–lhes víveres à saciedade" 842; "À vista disso, os filhos de Israel disseram uns aos outros 'que é isto?', pois não sabiam o que era. Moisés lhes disse: 'É o pão que o Senhor vos dá para comer'"843; "O povo se dispersava para recolhê–lo; em seguida, o moía na mó ou o pisava num pilão; cozia–o em panelas e fazia bolos. O maná tinha gosto de bolo amassado no azeite. À noite, quando o orvalho caía sobre o acampamento, caía também o maná"844.

Mas no Novo Testamento a dádiva de Deus, aos que quiserem, é outra e de ordem superior: "(…) Em verdade, em verdade, eu vos digo, Moisés não vos deu o pão do céu, mas é meu Pai que vos dá o verdadeiro pão do céu. Pois o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo" e "Eu sou o pão da vida; aquele que vem a mim não terá fome, aquele que crê em mim jamais terá sede"845.

O maná era para todos indistintamente, mesmo para quem não o conhecia ("não sabiam o que era"); já o pão do céu é para aquele "que vier a mim".

Como convida a Sabedoria: "Vinde, comei do meu pão, bebei do vinho que preparei. Deixai a insensatez e vivereis! Andai, depois, pela via da inteligência"846.

Pois não se trata mais de pão que mata a fome mas, sim, de conhecimento e amor, ou verdade e bondade, que alimentam a vida de quem os busca.

Como canta um hino:

"O amor divino
da nossa Mãe criadora,
é o alimento do espírito
e da matéria sofredora"847.

Dois hinos após, mestre Irineu lembra a necessidade de eliminar os altos da soberba ou da ira e os baixos do medo ou da dúvida:

"Firmeza, firmeza, firmeza
eu peço a Deus.
Aplanai meu coração,
eu quero ser um filho seu"848.

E reafirma sua certeza de o caminho ser o do cuidado, da paciência, da obediência e do zelo, em busca da perfeição:

"Chamo o tempo, eu chamo o tempo,
para ele vir me ensinar
aprender com perfeição,
para eu poder ensinar.
Os que forem obediente,
tratar de aprender,
para ser eternamente,
para Deus lhes atender.
Depois que o tempo chega
ninguém quis aprender,
depois que refletir
é que vai se arrepender.
Firmeza no pensamento
para seguir no caminho.
Embora que não aprenda muito,
aprenda sempre um bocadinho"849.

Com esta firmeza no pensamento e a humildade de aprender o que for possível a cada instante, já que o conhecimento, neste caminho, é obra da Graça e do coração que a isto se aplica, mestre Irineu chega respeitosamente no jardim:

"Silencioso eu chego no jardim,
eu peço à Virgem Mãe
que Vós tenha pena de mim" 850.

Veja: não é em "um jardim" – é "no jardim".

Vale a pena nos debruçarmos sobre o percurso da chegada no "jardim" 851 e sua finalidade, nos oito hinos em que esta palavra progressivamente ocorre no decorrer do "O Cruzeiro Universal": no seu primeiro hino, mestre Irineu afirma que "me parece um jardim", no hino 59 canta "Deus me fez, para ser um filho Seu no jardim de belas flores", e no hino 72 – este, que acabamos de ver – ele "chega" no jardim.

Até aqui, ele passa da descoberta da existência de um jardim à compreensão de sua destinação e sua chegada a ela, memória a memória, símbolo a símbolo, signo a signo, no arco para dentro ou Retorno a Deus.

A seguir, no hino 79 ele receberá a missão de ser "jardineiro no jardim de belas flores", no hino 82 assumirá ser, além de "jardineiro, campineiro" (veremos por que…), no hino 90 explicitará sua fidelidade ao que ali encontra ("para sempre eu estou aqui") e no hino 95 vai cantar a Sagrada Família como a Mensagem central do jardim de Deus: "Jesus, Maria e José" (como também veremos à frente).

Para, após apresentar a Mensagem, no hino 114 intitular com alegria nossa Senhora da Conceição como "minha flor, minha esperança, minha rosa do jardim".

Cantam outros hinos:

"Senhora Mãe Santíssima,
o Seu jardim Deus preparou.
Colocou Seu bento filho,
Ela é a árvore e Ele, a flor"852.

e

"Sois divina, sois divina,
sois divina com Vosso amor.
Sois divina, sois divina,
consagro em Vós este amor.
Sois divina, sois divina,
para todos ela amostra este amor.
Sois divina, Oh! Mãe divina,
Vós me apresenta esta flor.
Esta flor é pequenina,
ela brilha em todo jardim.
É divina, sois divina,
peço a Vós que brilhe a mim"853.

O trabalho para recobro de conteúdo devolveu "ela brilha em todo jardim" 854, em substituição a "ela brilha em todo o jardim", pois a flor do amor de Deus brota em todos os que o cultivam e não apenas em um determinado jardim, o qual seria "o jardim":

"Vejam–te meus olhos,
doce e bom Senhor;
vejam–te meus olhos
e morra eu de amor.
Olhe quem quiser,
rosas e jasmins:
que eu, com a Tua vista,
verei mil jardins"855.

A associação da Imaculada Conceição com rosas é imemorial. Basta pensar no rosário: com ele, "o povo cristão freqüenta a escola de Maria, para deixar–se introduzir na contemplação da beleza do rosto de Cristo e na experiência da profundidade do seu amor. Mediante o rosário, o crente alcança a graça em abundância, como se a recebesse das mesmas mãos da Mãe do Redentor"856.

Que não haja pressa em rezá–lo, porém!, para que não se perca a dimensão da "contemplação. Sem esta, o mesmo rosário é um corpo sem alma e a sua recitação corre o perigo de tornar–se uma repetição mecânica de fórmulas e de vir a achar–se em contradição com a advertência de Jesus: 'Nas vossas orações, não useis de vãs repetições, como os gentios, porque imaginam que é pelo palavreado excessivo que serão ouvidos'. Por sua natureza, a recitação do rosário requer um ritmo tranqüilo e uma certa demora a pensar, que favoreçam, naquele que ora, a meditação dos mistérios da vida do Senhor, vistos através do coração daquela que mais de perto esteve em contato com o mesmo Senhor, e que abram o acesso às suas insondáveis riquezas"857.

Pois, como ensina santa Teresa de Ávila: "agora entenderei a diferença que há entre ela [a oração vocal] e a oração mental, que é o que fica dito: pensar e entender o que falamos, com Quem falamos e quem somos nós que nos atrevemos a falar com tão grande Senhor. Oração mental é pensar nisto e em outras coisas semelhantes, como no pouco que O temos servido e no muito que estamos obrigadas a servir; não penseis que seja uma coisa complicada, nem vos espanteis com o nome. Rezar o Pai–nosso e a Ave Maria ou qualquer outra coisa é oração vocal. Vede que, sem a primeira [a mental], esta [a vocal] vai produzir uma música desafinada; até as palavras nem sempre sairão certas"858.

Caracteristicamente, porém, na doutrina daimista, ora a rosa, ora a flor, se associam tanto à Virgem Maria quanto ao Filho eterno, em Jesus Cristo.

A um ponto tal que, no começo da ritualização da doutrina daimista, como vimos, homens e mulheres usavam uma rosa sobre o peito, substituída após pela estrela de seis pontas, a partir daí com uso indistinto da estrela para os dois gêneros, ficando a rosa só para as mulheres (estilizada em um broche de tecido aposto apenas na farda branca de gala).

Esta associação com a rosa, aliás, nos permite relatar um testemunho da sofisticação teológica viva que percorre a expressão da doutrina daimista, ao menos no tempo em que mestre Irineu estava no mundo, pela similitude com um trecho incrustado ao meio do Antigo Testamento, de bastante improvável, para não dizer impossível, conhecimento por homens e mulheres não acostumados a perscrutar os Livros menos citados da Escritura à busca de sinais (ao contrário do que em geral ocorre com o Gênesis, o Êxodo, os Evangelhos e alguns dos apensos ao Novo Testamento, como as Epístolas, bem mais conhecidos).

Pois quase todos os daimistas deste tempo, homens e mulheres, eram analfabetos ou semi–alfabetizados, torno a recordar…

Contam que entre os feitores de daime congregados à volta de mestre Irineu uma vez se instalou a disputa: quem fazia o "melhor daime"?, no sentido de daime mais bem preparado conforme o procedimento ensinado por mestre Irineu (abstinência sexual por três dias antes da colheita de material – cipó, folhas e madeira bálsamo, sempre sob a lua nova – e durante o serviço de preparo; absoluta abolição de pensamentos ou sentimentos impróprios às virtudes em todo este período, variável de sete a dez dias; integral dedicação à tarefa do feitio até o momento em que o daime, já pronto, esteja descansando em garrafas de vidro e nunca de plástico).

(Veio depois, no correr dos anos 80, sob forma experimental, a invenção de daime "dobrado" e outras formas de preparar daime: sem cozer, cozido várias vezes com mais folhas de "rainha", para aumentar o nível de DMT na bebida, ou com a adição de outros tipos de planta, como o peiote, ou mescal, numa pitoresca mas improvável "união da águia e do condor", ou "fusão" nova–era de formas norte–americanas e andinas de culto à espiritualidade – seja lá o que "andinas" queira dizer…, já que os 7.500 quilômetros da Cordilheira dos Andes abrigam sete países e ao menos dez áreas etnográficas, com dezenas de culturas diferentes entre si, e tradições não se "fundem" apenas pela mescla do uso de plantas psicoativas.)

Daime pronto para o serviço

Daime pronto para o serviço

Mestre Irineu convocou seus feitores e declarou que certo dia haveria um serviço espiritual dedicado a esta "conferência de mérito, para atribuição de patente"859: todos trariam uma garrafa de daime, as garrafas seriam colocadas em uma mesa ao centro do serviço e na garrafa com o "melhor daime" os presentes mirariam uma rosa.

Francisco Granjeiro, Manoel Cipriano, Raimundo "Loredo" Ferreira, Sebastião Mota de Melo e outros feitores trouxeram as garrafas e, em certo momento do serviço, todos miraram uma rosa brotar na garrafa do daime feito por "seu" Loredo860.

Até aí poderia parecer somente fábula do imaginário daimista, não fosse o fato de depararmos o seguinte episódio na Escritura, análogo na estrutura e no sentido: "O Senhor falou a Moisés dizendo: 'Fala aos filhos de Israel e faz com que te entreguem um bastão por tribo, isto é, doze bastões, entregues por todos os teus responsáveis de tribos. Escreverás o nome de cada um no bastão. No bastão de Levi escreverás Aarão, pois só haverá um único bastão para cada chefe de tribo. Levarás os bastões para a tenda do encontro – diante do Documento – onde me encontro convosco. O homem cujo bastão florescer será o que escolhi: assim, afastarei de mim os protestos que os filhos de Israel proferem contra vós (…) No dia seguinte, Moisés entrou na tenda do Documento e viu que o bastão de Aarão, da casa de Levi, havia florescido: um botão havia despontado, uma flor havia desabrochado e amêndoas haviam amadurecido"861.

No hino seguinte, após ter chegado "no jardim", mestre Irineu expõe com clareza sua vontade à Virgem Mãe e ao Pai eterno – "quero que" – e volta a admoestar a irmandade pela fraqueza de vontade, rebeldia e deslealdade:

"Eu vi a Virgem Mãe,
nas alturas onde ela está.
Me mandou que eu afirmasse
a firmeza, eu afirmar.
A lua é quem dá força
para a terra criadora,
quero que Vós me proteja,
Vós, como mãe protetora.
Ô, divino Pai eterno,
Soberano onipotente,
quero que Vós me dê força
para ensinar esta gente.
A sempre Virgem Maria
é na terra e no astral,
aquele que for rebelde
precisa disciplinar.
Eu ensino é com amor,
com firmeza e lealdade.
Quando vêm falar comigo
sempre trazem a falsidade.
Isto é deles, não é meu,
faço por não compreender.
Depois eles saem dizendo
que o Mestre não tem saber"862.

A expressão "isto é deles, não é meu, faço por não compreender" prega a necessidade de discriminar entre o que é do outro e o de si, à busca de não assumir como seu o que o outro tenha de inverídico ou maldoso: "afasta também Teu servo dos orgulhosos: que não tenham domínio sobre mim"863.

Neste intuito, um hino de Francisco Fernando Filho, o "Tetéu", canta:

"O homem que é homem
não se mete em trança,
o homem que é homem
não mantém distância".

Pois quão difícil é manter–se próximo sem "se misturar", quer com os irmãos, quer em si mesmo, no caminho do retorno a Deus!

A seguir, mestre Irineu canta uma das mais claras lições – entre todos os hinos da base doutrinária – sobre a dinâmica da reencarnação, dando ênfase à necessidade de desenvolvimento espiritual continuado como forma de preparo para a passagem:

"A morte é muito simples,
assim eu vou te dizer:
eu comparo a morte,
é igualmente ao nascer.
Depois que desencarna,
firmeza no coração864.
Se Deus te der licença,
volta a outra encarnação.
Na terra, como no céu,
é o dizer de todo mundo:
se não preparar o terreno,
fica um espírito vagabundo"865.

Contam que este hino foi recebido pertinho da passagem de Antonio Gomes, em 1946866. Uma vez mais, Aquele que habita mestre Irineu ensina a ele e, através dele, à irmandade: o momento da passagem de uma vida a outra, quer da espiritual para a material, quer desta, a "nossa", para retornar à espiritualidade, é sempre um nascer. Nascer e renascer, nascer e renascer, nascer e renascer, a dinâmica da imortalidade, já que em Deus não há morte, só vida:

"Te apresenta ao Vosso Pai,
foi quem te mandou chamar,
teu tempo completou,
que é para ti, que é para ti te apresentar.
Ô, meu Senhor Amado,
eu vim me apresentar,
atender Vosso chamado,
que Vós me, que Vós me mandou chamar"867.

Com firmeza de intenção, porém, para não haver apego à forma de vida em que se esteja – assim como todos relutamos em morrer, temendo o ato de desligamento desta vida, há desencarnados que refugam encarnar, por temer as vicissitudes da destinação encarnada.

Da dinâmica dos encantados, neste aspecto, nada sei.

Todavia, como mestre Irineu congrega uma irmandade de encarnados, o ponto de vista privilegiado forçosamente deve ser este, para ser útil e eficaz no plano da salvação. Então, é a estes que se dirige ao enfatizar a necessidade de "preparar o terreno para que o espírito não fique vagabundo", isto é, errante.

Canta um hino:

"Ele veio para ensinar
neste mundo universal,
para todos nós trabalhar
para a vida espiritual"868.

Um dos episódios mais marcantes que pude acompanhar, no que diz respeito a "espíritos errantes", foi o vivido por uma irmã, psicóloga de renome em grande cidade brasileira. Argentina de origem, e obrigada a se refugiar no Brasil durante a última ditadura militar de seu país, um dia me referiu estar atendendo uma paciente, também psicóloga, com clássicos indícios de psicose; aos poucos analisamos o caso e o que parecia sintomas psicóticos – "saída de si", "sensação de ser outra pessoa", "visualização espontânea de cenas desconhecidas" e "fluxos intensos de afetos sem motivo aparente", por exemplo – revelou–se o início de um processo de grande importância espiritual: o auxílio no bom encaminhamento de seres que, cruelmente mortos no mundo, haviam "estagnado" em camadas do astral e não conseguiam se encaminhar para outros níveis, quer por falta de admissão de terem "morrido", quer por ausência de entendimento das razões de estar "onde" e "como" estavam, de tão brutal fora para eles a passagem.

Enquanto o atendimento clínico em consultório se dava – pois outras razões haviam trazido a paciente a atendimento –, eu e esta irmã estudamos o caso em sucessivos serviços espirituais, não apenas para compreender do que se tratava – pois poderia ser apenas um quadro psicopatológico mais grave – mas para gerar nela um espaço interno de conforto que a permitisse lidar com mais tranqüilidade com o caso, sendo eficaz, então.

Imagine a redefinição teórica e metodológica necessária para uma psicóloga de formação convencional, em um caso como este!

Quando a paciente e ela, em uma sessão, produziram uma relação completa de nomes (com detalhes sobre a passagem de cada pessoa: data exata, descrição do local, circunstâncias etc.), soubemos ter condições de checar a objetividade do que se dava. Por minha sugestão, ela entrou em contato com organizações que, em seu país, buscavam informar–se sobre desaparecidos no período militar, e verdadeiramente as duas dezenas de nomes citados procediam, bem como corroboravam em minúcias as informações detidas por tais organizações sobre desaparecidos políticos.

A partir daí, tudo era questão de trabalhar: por meses seguidos, em sucessivas sessões em ambiente protegido, ela e a paciente trabalharam para "atender" – por meio da paciente, que servia de "canal de comunicação" ou médium – cada ser que havia passado tragicamente, ajudando–os a se conscientizar do que ocorrera, a aceitar a passagem para outras camadas de existência e, desta forma, a seguir seu caminho de evolução, agora no mundo espiritual.

Foi exaustiva a tarefa, redundando no "encaminhamento" de alguns milhares de seres – após o que o "comandante da operação", ele também assassinado pelas forças armadas, identificou–se como um importante líder na resistência contra a ditadura e explicou por que ela, argentina de nascimento, psicóloga e espiritualista, fora a escolhida para aquela delicada missão.

Este assunto põe em relevo, outrossim, um aspecto central da doutrina daimista e seu contraste frontal com as formulações católica, ortodoxa e protestante da mensagem cristã, qual seja o da crença na existência de reencarnação, razão pela qual o trabalho de mestre Irineu foi alvo de severa oposição pela Igreja Católica desde os seus primórdios e a doutrina daimista nunca pôde ser percebida como doutrina cristã salvífica e evangelizadora, embora não focada em um dia de Juízo, após a morte, e, sim, na vida presente, se Deus quiser.

A salvação deve ser buscada agora869, na vida atual, prega a doutrina daimista, embora possa haver outras chances para quem não a receba.

Relembro o hino:

"Depois que desencarna,
firmeza no coração.
Se Deus te der licença,
volta a outra encarnação".

Desde o Concílio de Nicéia, em 325 d.C., Constantinopla e Roma se posicionam com firmeza contra a existência de reencarnação. No início, lá nos primeiros séculos da cristandade, isso se deu em contraposição à crença que ocorria entre os judeus nas primeiras comunidades cristãs (e até hoje prevalece em sua mística mais elaborada, a Kabbalah870), mas, com o tempo, reforçando tal postura doutrinária por considerar a noção de reencarnação herética e contrária à crença na ressurreição871 dos corpos no dia do Juízo Final, dogma central da fé católica.

Todavia, não se vê em parte alguma dos Evangelhos razão para esta contraposição e parcela fundamental da postura católica se estrutura sobre um versículo de Hebreus – "e como o destino dos homens é morrer uma só vez"872 –, uma Epístola que é alvo de crescentes dúvidas pelos estudiosos bíblicos quanto à autenticidade do texto (já santo Agostinho questionava sua autoria…).

Santo Agostinho, ao analisar a questão da sobrevivência da alma após a "morte" e sua comunicação com os "vivos", admite: "Eis uma questão que ultrapassa as possibilidades da minha inteligência: como os mártires, que sem dúvida alguma vêm em ajuda de seus devotos, aparecem: se em pessoa e no mesmo momento; se em diversos lugares e afastados uns dos outros; se somente onde se encontra seu túmulo ou em qualquer outro lugar onde se faz sentir sua ação? Ou bem, se eles permanecem confinados na morada reservada a seus méritos, longe de todo relacionamento com os mortais, contentando–se em interceder pelas necessidades dos que suplicam? Será assim como nós mesmos rezamos pelos mortos, sem lhes estar presentes e sem saber onde estão nem o que fazem?

(…) Sim, repito, essa é uma questão muito elevada para que eu possa atingi–la e muito complexa para que possa escrutá–la a fundo. Das duas hipóteses de sermos atendidos, que indiquei, qual será a verdadeira? Talvez os dois processos sejam empregados sucessivamente. Assim, às vezes os mártires [e não apenas mártires, pois o próprio santo Agostinho lembra que "o profeta Samuel, após sua morte, apareceu a Saul ainda vivo e lhe predisse o futuro"873] atendem–nos com presença pessoal, e às vezes por mediação dos anjos que tomam sua forma. Não ouso decidir e preferiria esclarecer–me junto a homens doutos que o saibam. Não é impossível que haja alguém que saiba, não digo saber, mas ignore. Porque Deus, em suas liberalidades, concede a uns certos dons e outros tais outros dons, conforme o ensino do Apóstolo que diz que a ação do Espírito Santo manifesta–se em cada um em vista da utilidade comum (…) Ora, entre todos esses dons enumerados pelo Apóstolo, quem recebeu o dom do discernimento dos espíritos é esse que conhece, como é preciso conhecer, estas questões, sobre as quais estamos a tratar"874.

Santo Tomás de Aquino, por sua vez, diz: "que os mortos apareçam aos vivos desta ou daquela maneira, isso pode acontecer por uma disposição especial de Deus, que quer que as almas dos mortos intervenham nos negócios dos vivos. E isso deve ser contado entre os milagres divinos"875.

Dada sua complexidade, então, este não é tema que possa ser aprofundado neste relato; todavia, por ser assunto controvertido em toda a Escritura e estar presente na doutrina daimista, menciono–o aqui de modo ligeiro.

A própria noção de "ressurreição" é ambígua: a despeito do Credo Católico afirmar crer "na ressurreição da carne", o apóstolo diz que "acontece o mesmo com a ressurreição dos mortos (…) semeado corpo animal, ressuscita–se corpo espiritual"876. E, em outra epístola atribuída a Paulo, o termo "ressurreição" é até mesmo utilizado em sentido metafórico e permite que se leia a hipótese de que a ressurreição possa se dar, efetivamente, na vida presente: "Mas Deus é rico em misericórdia; por causa do amor com que nos amou, quando estávamos mortos por causa das nossas faltas, deu–nos a vida com Cristo – é por graça que vós sois salvos –, com ele nos ressuscitou e nos fez sentar nos céus em Jesus Cristo"877.

Veja: "quando estávamos mortos por causa de nossas faltas" e "com ele nos ressuscitou"! De qual "morte" e "ressurreição" o apóstolo fala, então, na verdade?

Mais ainda: embora Jesus Cristo tenha afirmado "De fato esta é a vontade de meu Pai: que todo aquele que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia"878, um pouco antes, no mesmo Evangelho, Ele disse "(…) Vem a hora em que todos os que jazem nos túmulos ouvirão a sua voz, e os que tiverem feito o bem, deles sairão para a ressurreição que conduz à vida; os que tiverem praticado o mal, para a ressurreição que conduz ao julgamento"879.

Para qual "vida eterna" ele apontava?

Então, quanto à sobrevivência da alma à morte, e para ficarmos apenas nos textos santos que embasam o judaísmo e o cristianismo, isto é, sem termos de ver aqui textos santos de religiões explicitamente reencarnacionistas, desde o Antigo Testamento há clara menção à existência de algo como os "espíritos dos mortos", junto com a interdição explícita à consulta a eles – o que em certa medida se dá também na doutrina daimista, a qual, embora seja reencarnacionista, não se orienta ativamente no sentido de favorecer o contato com a alma de pessoas já falecidas, como ocorre no espiritismo kardecista e em sincretismos posteriores do kardecismo com os cultos de matriz africana, uma vez que nos serviços espirituais daimistas isto pode ocorrer espontaneamente mas não é objetivo doutrinário.

Como exemplo, em Gênesis, quando Jacó acreditou que seu filho José havia sido morto por feras selvagens, "(…) recusou conforto, pois, dizia, 'é em luto que descerei para onde está meu filho, na morada dos mortos'"880. Tobit, em sua exaltação a Deus, exclama: "Bendito seja para sempre o Deus vivo! Bendito seja o seu reino! É ele que castiga e tem compaixão. Ele faz descer à mansão dos mortos, nas profundezas da terra, depois, faz voltar da grande perdição"881.

Ao ser feito o elogio dos antepassados, assim se diz de Eliseu: "durante sua vida realizou prodígios e mesmo após a morte suas obras foram maravilhosas"882.

Todavia, ao mesmo tempo em que se aprende que "o Senhor faz morrer e faz viver, faz descer ao Sheol 883 ["morada dos mortos"] e de lá voltar"884, ouve–se clara a admoestação: a respeito das inquietações humanas neste sentido, – "(…) não deve um povo consultar os seus deuses, os mortos em favor dos vivos?"885 –, Deus adverte: "não haverá no meio de ti ninguém que faça passar pelo fogo seu filho ou sua filha, que interrogue os oráculos, pratique sortilégios, magia, encantamentos, enfeitiçamentos, recorra à adivinhação ou consulte os mortos"886, já que tais práticas contrariam a entrega confiante à providência divina.

Poder–se–ia argumentar que tais "mortos" estão "no purgatório" esperando pela ressurreição, mas a noção de "purgatório" não encontra referência alguma nos Evangelhos e, para ser concebida e figurar no Catecismo Católico (§s 1030–1031), busca apoio em um curto trecho do livro deuterocanônico887 II Macabeus, "(…) mandou que se celebrasse pelos mortos um sacrifício expiatório, para que fossem absolvidos de seu pecado"888, e nos Concílios de Florença (1438–1445) e de Trento (1545–1563), após ter sido proposta pelo papa Gregório Magno em 593.

Tal concepção – não aceita pela teologias cristãs ortodoxa e protestante, como a indicar não haver unanimidade em toda a cristandade – deu base à prática da venda de indulgências clericais, por Roma, no decorrer da primeira metade do segundo milênio a.C., como suposta forma de "purificar" os pecadores de "pecados menores", os "veniais", distintos dos "pecados maiores", os "capitais", desafiando a mensagem apostólica e a Escritura: "Com efeito, observar toda a lei e tropeçar em um só ponto é tornar–se culpado de tudo"889 e, falando das entregas a Deus, "não procures corrompê–lo com presentes, ele não os aceitaria"890.

Ademais, a noção de "purificação" a cargo de um intermediário, seja qual for, contraria de frente a noção de responsabilidade individual pela salvação, reafirmada em toda a Escritura, quer no Antigo, quer no Novo Testamento, como contrapartida natural do livre–arbítrio, e vai até mesmo contra o apóstolo e o profeta: "E, ao passo que cada sacerdote se põe cada dia de pé, a fim de cumprir suas funções e oferece com freqüência os mesmos sacrifícios, que são definitivamente incapazes de eliminar os pecados (…)"891, pois "aquele que peca é que morrerá; o filho não arcará com a iniqüidade do pai, nem o pai com a iniqüidade do filho; a justiça do justo estará sobre ele, e a maldade do mau estará sobre este"892.

Agora, quanto à reencarnação – já que uma coisa é a sobrevivência da alma à morte, como querem todas as crenças religiosas, e outra é a possibilidade de reencarnação, como não aceita a Igreja Católica –, no Antigo Testamento se encontra referência ao que futuramente, nos Evangelhos, será a vinda de João, o Batista, enquanto remanifestação do espírito do profeta Elias ("Elias era um homem semelhante a nós"893), prometido por Deus – "eis que vou enviar–vos Elias, o profeta, antes que venha o dia do Senhor (…) Ele reconduzirá o coração dos pais para os filhos e o coração dos filhos para os pais"894.

Mais cabalmente ainda, como lembrei no capítulo Premissas, afirma–se: "eu era, sem dúvida, criança bem dotada e recebera, em quinhão, boa alma; ou antes, como era bom, viera a um corpo sem mancha"895. Ora, se não houvesse reencarnação, não faria sentido afirmar "como era bom…": já que toda alma é criada boa896, só se pode supor que ela não seja boa se a maldade nela existente derivar de mal adquirido em encarnação anterior, em razão de pecado897; assim, o texto santo parece afirmar não ter havido maldade em vida anterior daquela particular alma, razão pela qual "viera a um corpo sem mancha".

Já no Novo Testamento, o anjo de Deus fala a Zacarias, esposo de Isabel e pai de João, o Batista: "(…) e ele mesmo caminhará à sua frente, sob os olhos de Deus, com o espírito e o poder de Elias, para reconduzir o coração dos pais aos seus filhos e conduzir os rebeldes a pensar como os justos, a fim de formar para o Senhor um povo preparado"898.

Sobre João Batista, Jesus Cristo afirmou que, "de fato, todos os profetas, bem como a lei, profetizaram até João. Se quiserdes compreender–me, ele é o Elias que deve voltar"899 – com isso eliminando a hipótese de "o espírito e o poder de Elias" ser apenas linguagem figurada do anjo – e "mas eu vos digo, Elias já veio e, em vez de reconhecê–lo, fizeram com ele tudo o que quiseram (…) Então os discípulos compreenderam que Jesus lhes falava de João, o Batista"900.

E é o próprio Elias que, no episódio da Transfiguração no monte Tabor, bem após a execução de João, o Batista, foi visto por Pedro, Tiago e João ao lado de Jesus Cristo e de Moisés901. Elias, este, aliás, que depois de sua própria passagem já havia se manifestado em Eliseu – "Os filhos de profetas, os de Jericó, que o haviam avistado desde a outra margem, disseram: 'O espírito de Elias repousa sobre Eliseu'"902 –, o qual fez ressuscitar um menino, entre muitos outros prodígios903.

Então, já não bastassem os depoimentos e experiências pessoais que em inúmeras civilizações e religiões parecem atestar a sobrevivência da alma, ou os estudos contemporâneos sobre a existência de "vida" após a "morte", não há porque não crer também em reencarnação, dadas as inumeráveis alusões existentes neste sentido desde muito antes de ter sido codificado o espiritismo por Allan Kardec, a partir de 1857, ou o Ocidente ter conhecido, após 1875 e pela Sociedade Teosófica, as noções reencarnacionistas presentes havia já dois milênios em religiões orientais como o hinduísmo e o budismo904.

Mas também é necessário perceber que, contrariamente à suposição dominante na cultura nova–era, que reduz, relativiza e mistura as estruturas doutrinárias de que se apossa, não basta à pessoa humana "trabalhar–se" para "conquistar a iluminação" ou, à alma, encarnar–se sucessivamente para atingir a bem–aventurança…

"Com efeito, é pela graça que vós sois salvos por meio da fé; e isso não depende de vós, é dom de Deus. Isto não vem das obras, para que ninguém se orgulhe"905.

É necessário admitir que a vontade bondosa de Deus é soberana em todos os momentos da existência de suas criaturas906 e que a Graça não está prometida como decorrência inevitável das obras ("merecimento"), como também, por outro lado, que a Graça pode se manifestar sempre que a Deus convenha907, bastando para isso Sua bondosa vontade, até mesmo subvertendo o que possamos acreditar ser o curso natural da evolução.

Enquanto isso não ficar claro, não se aceita de forma verdadeira a necessidade de converter o coração, amar verdadeiramente a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, respeitar as virtudes e rogar incessantemente a Graça, razão pela qual bem poucas pessoas obedecem fielmente à Palavra de Deus e agem como "filhos da promessa", verdadeiros filhos de Deus, respeitando as virtudes: "(…) não são os filhos da carne que são filhos de Deus; como descendência, somente os filhos da promessa são levados em conta"908.

Como canta mestre Irineu,

"os que forem obediente,
tratar de aprender,
para serem eternamente,
para Deus lhes atender"909.

(A sutileza do hino chama à responsabilidade individual: "os que forem obediente", no singular910, poderão "ser atendidos", no plural.)

O hino seguinte de mestre Irineu menciona os "caboclos de cura", entidades de perfil indígena que, como já vimos, podem ser invocados para auxiliar na cura física ou no reequilíbrio moral de quem necessita.

Aliás, este hino, o 75, é um outro exemplo do uso simbólico de elementos da natureza.

Nele, mestre Irineu canta:

"As estrelas já chegaram
para dizer o nome seu,
sou eu, sou eu, sou eu,
sou eu um filho de Deus".

Certamente não se trata dos corpos celestes vistos no firmamento, e por isso dona Maria Marques "Damião" cantara, prestes a fazer sua passagem:

"Ao meu Mestre eu entrego
as estrelas que eu recebi,
para Vós passar um visto,
que eu não sei se mereci"911.

Trata-se, aqui, dos hinos!

Voltando ao hino de mestre Irineu, ele canta:

"As estrelas me disseram:
ouvir muito e falar pouco.
Para eu poder compreender
e conversar com meus caboclos.
Os caboclos já chegaram
de braços nus e pés no chão,
eles trazem remédios bons
para curar os cristãos"912.

E introduz duas novas classes de informação: a ênfase no diálogo interno, em detrimento do externo, e a destinação da cura, os cristãos.

Assunto delicado, este, o do "povo destinado", também denominado "povo eleito"913!

Todavia, penso que é disso mesmo que aqui se trata, já que "eleito" não implica "melhor" ou "pior" e, sim, tão–só, fruto de destinação: "(…) destinei–te a seres luz das nações, a fim de que minha salvação esteja presente até a extremidade da terra"914.

Vejamos, primeiro, "compreender e conversar com meus caboclos". Trata–se de, após tê–los conhecido, compreendê–los e ouvir o que eles têm a ensinar no caminho da cura; para isto, é necessário aprender a ouvir, capacidade que todos temos mas habilidade que poucos desenvolvemos.

Em geral somos tão envolvidos pelo brilho do próprio pensamento – ou pelo que, para nós, pareça ser "brilho", apenas porque é "nosso"… – que falhamos em prestar atenção e com paciência ouvir o que o outro, encarnado, desencarnado ou encantado, tem a dizer ou está dizendo. E isto se refere, com freqüência, também, à inteligência de nosso ser total, alma–mente–corpo, que com freqüência nos sinaliza com a "voz interna" o que nos falta (ou nos sobra), mas, por não a ouvirmos ou atendermos, não é respeitada.

Já a expressão "cura para os cristãos" merece reflexão de outra natureza, já que outros hinos reforçam o conceito que está implícito: "saindo desta linha, não espere ser chamado"915, "não estando nesta linha, nunca é de conhecer"916, "quem seguir na minha linha segue limpo e não errado"917.

e

"Somos todos perfilados,
na bandeira agaloados 918.
Escute a voz, quem vai sair,
que somos todos numerados"919.

Diz a Escritura: "Sem embargo, permanece o sólido fundamento assentado por Deus. Serve–lhe de selo esta palavra: o Senhor conhece os seus"920.

Com franqueza, este é um dos dilemas teológicos que menos me intrigaram, de todos os que defrontei no correr do estudo comparado de religiões. Creio que Deus, o protoprincípio eterno do qual tudo emana existência por Sua bondosa vontade, manifesta Seu amor e Sua verdade como convém a cada local, conforme o plano de existência desejado para aquele local e não de outra forma ("local", aqui entendido como região de abrangência geográfica ampla o suficiente para embasar uma sociedade e caracterizar uma cultura ou um povo).

Sendo assim, nada mais "natural" do que, para Suas criaturas, Ele assemelhar "um", aqui, "outro", ali, ou um "terceiro", acolá, conforme a sociedade e cultura locais: já as criaturas designadas ao caminho "x", ao caminho "y" ou ao caminho "w" assim o percebem diverso, conforme a própria destinação: "Se todos os povos caminham cada qual em nome de seu deus, nós caminhamos em nome do Senhor, nosso Deus, para todo o sempre"921.

Santo Tomás de Aquino discorre: "O conhecimento de Deus, pelo qual retém firmemente os que predestinou para a vida eterna, é chamado o livro da vida [um pouco adiante o teólogo dirá: 'a força divina que trará um dia à memória de cada um todos os seus atos, é chamada o livro da vida']. Como a escritura de um livro é o sinal do que se deve fazer, assim também o conhecimento de Deus é, nele, uma espécie de sinal dos que deve conduzir à vida eterna"922.

Por sua vez, e pelo amor de Deus, cada caminho tem prescrições, métodos rituais, táticas de aproximação e formas de reconhecimento próprias do que é necessário e conveniente para cada particular tipo de destinação e modo de reintegração – ou, nas palavras de santo Tomás de Aquino, "a escritura de um livro é o sinal do que se deve fazer".

Veja o que prega a Escritura: "Por isso, irmãos, redobrai de esforços para consolidar vossa vocação e eleição"923. Assim, conforme a eleição – ou destinação –, está a vocação – ou inclinação pessoal.

Compete a cada um de nós, seja qual for nossa eleição, conhecer e compreender qual é nossa particular destinação, porque para ela temos vocação, graças a Deus, para fazer por merecer dentro dela, no caminho da salvação – o qual, aliás, é sempre o mesmo nas principais Tradições, independente das variações próprias de símbolo e forma de culto: contínuo respeito à justiça e às virtudes e amor ao próximo, como a si mesmo, e a Deus, sobre toda criatura.

Assim ensina santo João da Cruz: "todas estas formas se representam sempre debaixo de modos limitados; e a Sabedoria de Deus, infinitamente pura e simples – à qual se deve unir o entendimento – não admite modo nem forma alguma, não podendo ser encerrada nos estreitos limites de um conhecimento distinto e particular (…) Assim como Deus não pode ser limitado nem encerrado sob imagem nem figura, nem inteligência alguma particular, do mesmo modo a alma, para unir–se a ele, não há de estar presa a forma alguma ou inteligência distinta"924.

Todos os bons caminhos equivalem, enquanto regra geral, e por isso devem receber igual respeito, embora certo caminho venha a ser o mais indicado a um certo caso em particular e, um outro caminho, o mais indicado a outro caso específico, conforme a destinação de cada um, quando passa a ser o melhor caminho para o caso em questão.

Como me narrou o irmão que por alguns anos foi o feitor de daime da casa de oração que eu dirigi: "Eu, um dia fui ajudar uma irmã a fazer daime num determinado centro, em uma 'linha' que não é a do Mestre. Mas ela me convidou, né?, e eu fui com toda a satisfação ajudá–la a fazer o daime e eu sentia que havia um interesse que eu ficasse justamente nessa 'linha', fazendo daime. Eu até me animei e começamos a cozinhar o daime, começamos a cozinhar o daime e, já para terminar o feitio, eu pedi permissão à comandante 925 do feitio para tomar um pouco daquele daime novo, que eu queria tirar uma experiência minha, né? Aí eu tomei um pouco do daime e me deram uma cadeira. Não demorou nada, o trabalho chegou, né?, o trabalho chegou e eu fui enfraquecendo um pouco o corpo, sentindo as minhas carnes se desmanchar e aquilo foi me esmorecendo até uma altura, quando eu me lembrei do nosso dono mesmo, nosso chefe Império Juramidam, e recorri a ele: que me salvasse daquela situação, porque eu me achava num lugar que não conhecia e só ele, naquela hora, podia me defender das intrusões que apareciam na minha mente. E na hora me veio, né?, um arco–íris de luz ligando a terra ao astral e nesse arco–íris eu senti quando a cadeira foi subindo por esse arco–íris de luz, foi subindo, foi subindo, foi subindo, e em determinada altura eu me deparei com um palácio, um palácio de nuvens, e dentro desse palácio926 eu implorei ao nosso mestre, né?, que me guiasse dentro daquela luz e quando, de repente, saiu uma voz no universo… Aquela voz dizia assim, era justamente uma instrução para mim também, né? Ela dizia assim, que eu podia cantar assim: 'Estou entregue a Juramidam, no céu, na terra e no mar; aqueles que de mim precisam, estou pronto para ajudar. Eu vivo neste mundo, meu consolo é só cantar, eu vivo trabalhando para aqueles que me procurar'. Aí, com o hino, eu fiquei consciente que eu tenho dono, né?, nós todos temos dono, que é ele o dono. Então, por maior que seja o convite, a gente tem que saber que vai lá prestar um serviço e não ficar de vez, porque é ele quem determina e ele consente a gente fazer, por exemplo, né?, que eu vá fazer um trabalho dentro de uma necessidade, para qualquer uma pessoa que esteja necessitada, mas sabendo que eu tenho um compromisso com a nossa doutrina, que é justamente a 'linha' do Império Juramidam. Nós somos a família dele, né?"927.

Os principais caminhos, cada qual a seu modo, pedem o que, no caso do caminho cristão, está na Escritura: "Não vos conformeis ao mundo presente, mas sede transformados pela renovação da vossa inteligência, para discernirdes qual é a vontade de Deus: o que é bom, o que lhe é agradável, o que é perfeito"928.

Como mencionei atrás, "cada rio é de seu jeito, todos sendo a mesma coisa mas sem se misturar, até se encontrarem e ir para o mar. Porque só tem um mar. Porque só tem um Deus. Cada rio tem seu jeito e sua história e todos juntos são a obra de Deus".

Para quem, então, mestre Irineu cantaria, senão para os cristãos, irmãos de sua irmandade – ou todos os que partilham semelhante destinação, dentro desta Tradição e de sua Escola?

No hino seguinte mestre Irineu torna a alertar para o risco da acomodação às ilusões da vida material e do deixar esvanecer Deus, na memória:

"Tanto tempo que viveu
no mundo de provação,
de Deus tu te esqueceu
e só é bom a ilusão"929.

A seguir, vêm vários ensinamentos juntos, em um hino só:

"Nas virtudes em que cheguei,
Canto–ensino vem comigo,
o poder que Deus me dá
para este mundo eu doutrinar.
Doutrinar o mundo inteiro
para todos aprender,
castigar severamente
quem não quiser obedecer.
Canto–ensino é com amor,
com prazer e alegria,
obedecendo ao Pai eterno
e à sempre Virgem Maria.
As palavras que eu disser
aqui perante a este poder
estão escritas no astral
para todo mundo ver.
Sigo firme a minha linha,
sem a nada eu temer,
porque eu sou filho de Deus
e confio neste poder.
Dou licença e dou pancada,
aqui eu faço a minha justiça.
Precisa nós acabar
com o correio da má notícia"930.

O trabalho de recobro de conteúdo devolveu "nas virtudes em que cheguei"931, onde se cantava "das virtudes em que cheguei", pois a forma deturpada fazia crer que ele estava chegando "de algum lugar", quando se tratava de registrar o nível de desenvolvimento atingido.

Refreando a afoiteza dos que buscam ver entidades onde nem sempre elas estão, mestre Irineu esclarece no próprio hino que "Canto–ensino" é o poder que Deus lhe dá para doutrinar "o mundo inteiro".

"E não é assim, não é cantando que ele ensina?"932.

O que não é igual a dizer que "todo mundo tem de ser doutrinado" pela doutrina daimista, como insistem os que se arvoram "salvadores" de quem lhes esteja ao alcance.

Veja que Jesus Cristo, que afirmou ter sido "enviado apenas às ovelhas perdidas da casa de Israel"933, declara: "Eu manifestei teu nome aos homens que, do mundo, me deste (…) Eu rogo por eles; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que tu me deste"934, mostrando haver destinação de alguns ("aqueles que tu me deste", os quais, embora possam ser muitos, não são todos) no que diz respeito a segui–Lo.

A seguir, o hino esclarece que não há como esconder o que se faz ou fala: o que somos também se expressa pelo que falamos e o que somos e falamos se registra na eternidade, para que, de um lado, sejamos avaliados por nossas obras – "com efeito, assim como o corpo, sem respiração, é morto, assim também a fé, sem obras, é morta"935 – e, por outro, para que possamos, por ação da força divina – o "livro da vida" –, retomar na memória nossas obras boas e más, no decorrer do Retorno936.

Narra santa Teresa de Ávila: "talvez seja eu quem não sabe entender essas visões, que não parecem imaginárias, embora algumas devam conter um quê de imagem. Mas como isso ocorre com a alma em êxtase, as faculdades não conseguem reproduzir o que se vê tal como o Senhor lhes apresenta e lhes permite provar. Digamos, portanto, que a Divindade é apresentada como um diamante muito claro, muito maior do que o mundo inteiro, ou como um espelho (…) Nesse diamante, vemos tudo o que fazemos, pois ele encerra tudo em si, não havendo nada que exista fora de sua imensidade. Foi um espetáculo maravilhoso ver nesse diamante, em tão breve espaço de tempo, tantas coisas juntas. Como lastimo, cada vez que me lembro disso, ter visto coisas tão feias como os meus pecados refletidas naquela claridade translúcida. Diante dessa lembrança, nem sei como posso resistir, fico tão envergonhada que não sei onde me esconder"937.

Por isso o Mestre canta "eu discorro a tua vida, para todo mundo ver"938 e lembra que "a minha memória divina eu tenho de apresentar"939.

Depois, torna a ecoar a Escritura – "Por que tens de olhar o cisco que está no olho do teu irmão, e a trave que está no teu olho, não a reparas?"940 – e repreende a irmandade: de nada adianta tomar daime e cantar hinos, dizendo–se cristão, se o que se faz é falar mal dos outros… Para isso, ordena a todos nós: "precisa nós acabar com o correio da má–notícia"!

(Quando do trabalho de recobro de conteúdo, optou–se por deixar "precisa nós acabar" e não ceder ao "precisamos acabar", para manter o tempo verbal imperativo, mais firme, do modo original de cantar941.)

Mas há mais um ensinamento no hino e isto nos traz a um aspecto ritualístico da doutrina daimista, de sólida base espiritual: quando no mundo, mestre Irineu nunca celebrou casamentos. Ele dizia ser mais adequado casar, para quem vive junto, mas não realizava o ritual: "Ele 'mandava' casar, mas essas coisas que pertenciam ao bem material ele não fazia… Ele ajudava, fazia a festa, fazia tudo, mas não fazia casamento diretamente, isto era com o padre e o juiz. Ele até fazia a festa na casa dele, mas ele mesmo não era um casamenteiro"942.

Aprofundando a questão com alguns dos mais experientes, pude saber que mestre Irineu explicava que "tudo que fosse feito na sede de serviços era feito 'no astral', para a eternidade"943; portanto, ao reconhecer que nem sempre os casamentos perduravam – e nisso não há obrigatoriamente erro, se cumprir a destinação –, não julgava acertado realizar a cerimônia no correr de um serviço espiritual.

Como ele cantou, "as palavras que eu disser aqui, perante a este poder, estão escritas no astral para todo mundo ver"944.

Inúmeros centros daimistas, em seu afã de fazer–se "igreja", é que passaram a realizar casamentos e até mesmo "batizar no daime" quem já era batizado no rito católico ou em outros rituais da Tradição cristã, algo que mestre Irineu nunca fez, "por ser desnecessário e desrespeito ao batismo que já acontecera"945.

Ademais, acatando a destinação de cada um e ao contrário do que se passou a ver em centros espirituais daimistas de todo o Brasil após os anos 80, teimosos em seu proselitismo preconceituoso, mestre Irineu sempre alertou para o fato de que orientações espirituais divergentes não deveriam ser razão da separação de casais. Com isso, recobrava o ensinamento apostolar: "se um irmão tem uma mulher não–cristã, mas que consente em viver com ele, não a repudie. E se uma mulher tem um marido não–cristão, mas que consente em viver com ela, ela não o repudie. Pois o marido não–cristão é santificado por sua mulher e a mulher não–cristã é santificada por seu marido"946.

Dos sete sacramentos da Igreja Católica, agrupados pela Cúria Romana como sacramentos de "Iniciação" (Batismo, Eucaristia e Crisma, ou Confirmação), de "Cura" (Confissão, ou Reconciliação, e Unção dos enfermos, ou Extrema–unção) e de "Missão" (Ordem e Matrimônio), Aquele em mestre Irineu manteve na doutrina daimista apenas o do Batismo e, embora por livre associação mais recente, já que ele teria afirmado "eu sou o daime e o daime sou eu"947 e isto muitas vezes foi entendido em sentido literal, algo como o sacramento da Eucaristia..

Coincidentemente, santo Agostinho resume: "Pois o mesmo Senhor e os ensinamentos dos apóstolos transmitiram–nos não mais uma multidão de sinais, mas um número bem reduzido. São muito fáceis de serem celebrados, de excepcional sublimidade a serem compreendidos, e a serem realizados com grande simplicidade. Tais são: o sacramento do batismo e a celebração do corpo e sangue do Senhor"948.

Cabe aqui um comentário sobre o sacramento da Eucaristia949, que apenas os daimistas mais recentes associam diretamente ao ato de tomar daime e, por isso, a ele se referem com o termo "comungar".

Jesus Cristo, como atestado por três evangelistas (Mateus, Marcos e Lucas), ensinou que a comunhão do pão e do vinho, como símbolos do amor e da verdade do Pai, nele presentes950, e em substituição aos ensinamentos anteriores951, era uma forma de a Ele se reunir952: "Durante a refeição, Jesus tomou o pão e, depois de ter pronunciado a bênção, ele o partiu; depois, dando–o aos discípulos, disse: 'Tomai, comei, isto é o meu corpo'. A seguir, tomou uma taça e, depois de ter dado graças, deu–a a eles, dizendo: 'Bebei dela todos, pois isto é o meu sangue, o sangue da Aliança, derramado em prol da multidão, para o perdão dos pecados'"953, "Durante a refeição, ele tomou o pão e, depois de ter pronunciado a bênção, partiu–o, deu–lhes e disse: 'Tomai, isto é o meu corpo'. A seguir, tomou uma taça e, depois de ter dado graças, deu–lhes, e todos beberam dela. E ele lhes disse: 'Isto é meu sangue, o sangue da Aliança, derramado em prol da multidão'"954 e "A seguir, ele tomou o pão e, depois de ter dado graças, partiu–o e lhes deu, dizendo: 'Isto é o meu corpo dado por vós. Fazei isto em memória de mim'"955.

Em outras palavras, e apenas para explicar melhor por meio de um exemplo bem conhecido, antes da consagração tanto a hóstia quanto o vinho são apenas hóstia ou vinho e é o ato do sacramento eucarístico, rito do mistério, que os transubstancia, em uma dinâmica sacra nem de longe encontrada no caso do daime, visto que os daimistas mais experientes admitem a utilidade da bebida até mesmo em situações banais, como a de tomar um pouco de daime e recostar-se, em meio a um mal-estar de origem ignorada, sem ritual algum mas fé em Deus em que passará, se o efeito psicossomático da bebida e a expansão de consciência por ela produzida ajudarem a combater a origem do mal.

Mesmo assim, pela partilha grupal do daime e pelo fato de cada ritual evangelizador daimista ser um ato de revivescência do Cristo de Deus em cada um, há quem associe tomar daime a "comungar". Todavia, não há um depoimento sequer que ateste que mestre Irineu explicitasse tal analogia e mesmo entre os mais velhos não se encontra o uso do termo.

É "tomar daime", mesmo…

No tocante aos outros sacramentos, nada há na Escritura que indubitavelmente valide a Crisma, a Extrema–unção, a Ordenação956 e inclusive o Matrimônio, enquanto rito nupcial a cargo de um sacerdote – a indissolubilidade da união entre homem e mulher, sim, mas não o ritual, em si: "Não lestes que o Criador, no princípio, os fez homem e mulher e que disse: Eis por que o homem deixará seu pai e sua mãe e se ligará à mulher, e os dois se tornarão uma só carne? Assim, eles não são mais dois, mas uma só carne. Não separe, pois, o homem, o que Deus uniu!"957.

E quanto ao sacramento da Confissão, mestre Irineu nunca o implantou na doutrina como rito específico, destacado dos serviços espirituais de bailado ou de concentração: existe um hino determinado para isso, "Meu divino Pai do céu" (cantado três vezes seguidas com uma vela acesa na mão e apenas nos serviços aos Santos Reis, a São João, à Conceição da Imaculada e ao Natal 958, rezando–se as Nove Preces entre eles e uma Salve, Rainha ao final), para o daimista se reconciliar com Deus no coração:

"Meu divino Pai do céu,
Soberano criador,
eu sou um filho seu
neste mundo pecador.
Meu divino Pai do céu,
meu soberano Senhor,
perdoai as minhas culpas
pelo Vosso santo amor.
Meu divino Pai do céu,
Soberano onipotente,
perdoai as minhas culpas
e Vós perdoe os inocentes.
Eu confesso os meus pecados
e reconheço os crimes meus.
Eu a Vós peço perdão,
ao meu divino Senhor Deus"959.

Neste sentido, ele se manteve fiel antes ao Antigo Testamento – "A ti, que ouves a oração, todo ser de carne pode chegar. As faltas têm sido mais fortes que eu, mas tu apagas nossos pecados"960 – do que ao Novo: "Confessai, pois, vossos pecados uns aos outros e rezai uns pelos outros, a fim de serdes curados"961.

Canta um hino:

"Assim mesmo é que eu quero
que todos venham chegando
para me dizer a verdade,
sempre aqui estou esperando.
Aquele que não temer
da verdade me dizer
estará junto comigo,
aqui dentro do poder"962.

E canta outro:

"Oh! minha Mãezinha
do meu coração,
venho me apresentar,
Vós me dê o perdão.
Me conta teus crimes
para eu ver teu valor
no mundo escuro
aonde tu andou" 963.

Pela mesma razão, não denominava o centro espiritual dirigido por ele de "igreja" ou "templo" e, sim, apenas, "sede de serviços"964.

Um hino após e ele recebe a missão de ser "jardineiro no jardim de belas flores", onde tem tudo o que Deus dá a quem prestar atenção:

"Minha Mãe, minha Rainha,
foi Ela que me entregou,
para mim ser jardineiro
no jardim de belas flores.
No jardim de belas flores
tem tudo o que procurar,
tem primor e tem beleza,
tem tudo o que Deus me dá.
Todo mundo recebe
as flores que vêm de lá,
mas ninguém presta atenção,
ninguém sabe aproveitar.
Para zelar este jardim
precisa muita atenção,
que as flores são muito finas,
não podem cair no chão.
O jardim de belas flores
precisa sempre aguar
com as preces e o carinho
ao nosso Pai universal"965.

Além de alertar para o fato de que todos recebem o que brota deste jardim, pelo amor de Deus, embora em geral não o aproveitem, razão pela qual é preciso muita atenção, ensina a necessidade de continuamente nutrir "o jardim de Deus" com oração e agradecimento: "Quem principia deve ter especial cuidado, como quem fosse plantar um jardim, para deleite do Senhor, em terra muito improdutiva, com muitas ervas daninhas. Sua Majestade arranca as ervas daninhas e planta as boas. Façamos de conta que isso já aconteceu quando uma alma decide dedicar–se à oração e começa a se exercitar nela. Com a ajuda de Deus, temos de procurar, como bons jardineiros, que essas plantas cresçam, tendo o cuidado de regá–las para que não se percam e venham a dar flores, cujo perfume agradável delicie esse nosso Senhor, para que Ele venha a se deleitar muitas vezes em nosso jardim e a gozar entre essas virtudes" 966.

Já que "assim como o vento leva milhares de sementes aladas, assim também cada instante traz consigo germes de vitalidade espiritual que vêm pousar imperceptivelmente no espírito e na vontade dos homens. A maior parte destas inumeráveis sementes perece e fica perdida, porque não estão os homens preparados para recebê–las. Pois sementes como essas não podem germinar a não ser na boa terra da liberdade, da espontaneidade, do amor"967.

Canta um hino:

"Nestes hinários
que trago para vocês,
tem muita coisa boa
que é preciso entender.
A tua paz,
você tem que criar.
E o teu amor,
você tem que plantar.
A união
é fruto do Esplendor:
quem não tiver jardim
não colhe nem uma flor"968.

O jardim é de todos, pois é onde, pela Graça, brota a flor amorosa da salvação, conhecimento e amor, requerendo preces e gratidão.

Mas é de cada um, no íntimo do coração.

Mesmo assim, mestre Irineu prenuncia o que acontecerá: cansado de lutar com a irmandade, aborrecido com a falta de união e desgostoso com a desconfiança de que é alvo, por mais provas que dê, canta:

"Chamo a força, eu chamo a força,
a força vem nos amostrar.
Treme a terra e balanceia
e Vós não sai do seu lugar.
Treme a terra, treme a terra,
treme a terra e geme o mar.
Ainda tem gente que duvida
do poder que Vós me dá.
Aqui dentro da verdade
tem um certo mentiroso
que calunia o seu irmão
para se tornar muito viçoso.
Mas ninguém não se lembra
que chamou o Mestre mentiroso,
devagarinho vai chegando
e quem chamou é que vai ficando"969.

(O recobro de conteúdo trouxe "um certo mentiroso"970 onde, antes, se cantava "uns certos mentirosos": quem se achar que se corrija!)

A estrutura musical deste hino é deveras impactante, pois conforma um perfil melódico serpenteado que "sobe" e "desce" sem cessar (com o primeiro e terceiro versos de cada estrofe ascendentes e o segundo e o quarto, descendentes), em um andamento ligeiro que envolve a todos os que estão no salão!

Versões superficiais afirmam que a última estrofe narra a expulsão de um irmão por mestre Irineu, mas quem o conheceu de perto recorda que ele mesmo raramente se intitulava "Mestre"971, assim como nunca permitia que lhe beijassem a mão972 ou se ajoelhassem973 frente a ele.

E para aqueles que ainda se deleitam na imagem de "jesus bonzinho", temendo enfrentar o aspecto exigente do amor de Deus, cabe lembrar: "Então, tendo feito um chicote com cordas, expulsou–os a todos do Templo, e as ovelhas e os bois; espalhou o dinheiro dos cambistas, derrubou suas mesas e disse aos vendedores de pombas: 'Tirai tudo isso daqui e não façais da casa de meu Pai uma casa de negócios'. Os seus discípulos lembraram–se do que está escrito: 'O zelo da tua casa me devorará'"974.

E João, o Batista, então?!: "(…)'Cria de víboras', quem vos ensinou para fugir da ira que está para vir?"975.

No Velho Testamento se encontra também tal dureza:

"Desgraça! Nação pecadora,
povo carregado de crimes,
raça de malfeitores,
filhos corrompidos (…)
Onde golpear–vos, ainda,
vós que persistis na rebelião?"976.

Canta mestre Irineu, como vimos um pouco atrás:

"Dou licença e dou pancada,
aqui eu faço a minha justiça"977.

Até o velho Mota é incisivo:

"Aqui estou dizendo
para os meus irmãos ouvir:
quem não for filho de Deus
vá saindo por ali"978.

Com o hino "Chamo a força", Mestre Irineu invoca o poder do céu e "balança" a irmandade, para ver quem fica em pé!

Por isso, já havia cantado atrás:

"Eu balanço e eu balanço,
e eu balanço tudo enquanto há "979.

E um outro hino também canta:

"Eu convido os meus irmãos
que queiram me escutar.
Para, junto comigo,
esta missão cultivar.
O nosso mestre vai falar,
o nosso mestre está falando:
eu mandei balançar
para ver quem está comigo.
Eu só vejo é hum, hum, hum,
e muita gente escapulindo.
E ainda saem dizendo
que estão junto comigo"980.

Relatam os daquela época que, em momentos assim, quando mestre Irineu invocava o poder do céu – "a força", no dizer daimista – em um serviço espiritual, "as árvores balançavam, os cachorros latiam, as vacas corriam no pasto e a gente até deitava no chão. Era todo mundo escorregando para o chão, que ninguém conseguia ficar nem sentado! A força passava rasinho, rasinho, rasinho assim, feito vento em lombo de cobra. E era um tal de grito p'ra cá, choro p'ra lá, 'Meu mestre, valei–me!', 'Meu mestre, me ajude!', que eu nem sei como a gente agüentava!"981.

A isto se alude sempre: à necessidade de preparo para lidar com o poder do céu, invocando–o se necessário mas sabendo ser tudo pela graça de Deus!

Canta um hino:

"A força é divina,
a força tem poder,
a força neste mundo,
ela faz estremecer"982.

"Já fazia um tempinho que eu tomava daime e, mesmo assim, vivia duvidando… Aí, meu irmão, uma noite 'a coisa pegou', a força foi chegando e eu fui vendo e não tive outra saída senão correr para a casa dele [nos últimos anos de vida no mundo, mestre Irineu morava perto da sede de serviços e nem sempre comparecia, em matéria, aos longos serviços de bailado]. Cheguei, bati e ouvi dona Peregrina:

Ele a chamava de "Pipiu"… Ele abriu a porta, fez sinal para eu entrar e eu me pus a rogar e pedir desculpas. Enquanto me desbulhava em lamentos e gemidos, ele levantou, abriu o janelão da frente da casa, apoiou aqueles dois braços imensos no beiral, me olhou e me chamou:

Engolindo o que dava para engolir, eu me levantei como deu e fui até lá. Quando eu parei ao lado dele, as suas mãos se iluminaram e uma bola de luz nasceu nelas.

Olhei de perto e vi a sede dos serviços. A mesma sede onde eu estava bailando fazia pouquinho! Lá estavam todos, eu via todo mundo bem pequenininho, todo mundo batendo maracá e bailando, mas eram eles mesmos, no salão da sede. Só não estava eu, nem eu ouvia música ou os hinos…

Ou então: "durante um feitio, o Mestre apertou com as mãos o material que cozinhava em água fervente. Um irmão, ao vê–lo fazendo assim, ameaçou fazer igual e foi alertado pelo Mestre:

Mas o irmão insistiu, chegou perto do panelão e meteu a mão lá dentro… para gritar e puxar o braço!, deixando para trás um pedaço do couro da mão…"984.

E, noutra vez, ia haver um arraial e a chuva ameaçava vir forte. Quem foi até a casa do Mestre para acompanhá–lo foi o "Cancão", que já encontramos atrás, na destituição de Wilson Carneiro. Dizem que o Mestre olhou o firmamento e disse que não ia chover no arraial. O "Cancão" só pensou e, ao fim da festa, quando havia chovido em toda Rio Branco, menos no arraial, o Mestre se encostou e indagou, sorrindo:

Por fatos assim986, ele canta em Maria "Damião":

"As lições é para todos
que quiserem acreditar,
levam o tempo a procurar
e a maior parte a duvidar"987.

Contam que, na época em que veio o hino "Chamo a força", um irmão particularmente maledicente freqüentava a sede dos serviços e foi preciso o Mestre recordar a Escritura: "Se eu não faço as obras do meu Pai, continuai a não crer em mim. Mas se eu as faço, muito embora não acrediteis em mim, crede nas obras. E assim conhecereis, e conhecereis cada vez melhor, que o Pai está em mim como eu estou no Pai"988 e "Quem é mentiroso, senão o que nega que Jesus é o Cristo?"989.

Para, no próximo hino, apresentar seu drama humano:

"Aqui tem um professor
que vai deixar de ensinar.
Que ensina, ninguém faz caso,
só lêem de diante para trás.
Só lêem de diante para trás,
mas ele não ensina assim.
Ele ensina é direitinho
mas ninguém não faz assim.
Se todos assim fizessem,
estavam um pouco adiantados,
eram servos de Deus
e do povo bem estimados.
Eu entrei em conferência
para deixar de ensinar.
A Virgem Mãe me disse:
ninguém não pode obrigar.
Se ensina, ninguém faz caso,
ninguém trata de aprender.
Depois não se admirem
de tudo o que aparecer.
Todos mandam em sua casa,
eu também mando na minha.
Todos ficam sem aprender,
eu fico com a minha Rainha"990.

É fabuloso, este momento!

Cansado de pregar à toa, mestre Irineu cogita parar de ensinar, expõe suas razões – ninguém busca conhecer direito, assim como ninguém busca fazer direito, conhecimento e obras, mesmo malfeitos, andando juntos –, decide aconselhar–se com a Rainha e recebe o ensinamento, válido também para ele: "ninguém não pode obrigar".

É o direito de escolha, régua do mérito e válido para toda criatura: "Ele mesmo criou o homem no começo e o entregou ao seu próprio arbítrio. Se quiseres, podes observar os mandamentos: ficar fiel depende de tua boa vontade"991.

Em todos os níveis de vida consciente se preserva tal direito e, no verso seguinte, na próxima estrofe, ouve–se quase um lamento, "depois não se admirem de tudo o que aparecer", no qual o Mestre mais parece uma mãe alertando seus filhos para o perigo pressentido…

Encerrando com a gloriosa reafirmação de sua destinação, fiel à devoção mariana e com ou sem a irmandade: "todos mandam em sua casa, eu também mando na minha; todos ficam sem aprender, eu fico com a minha Rainha".

Afinal, é forçoso"reconhecer que a escola não precisa do aluno, pois é o aluno quem precisa da escola, assim como também que o Mestre não deve nada aos seus discípulos e que são os discípulos quem deve tudo ao seu mestre"992.