Em meados dos anos 30 Irineu já congregava regularmente uma dúzia de irmãos à sua volta para os serviços espirituais de evangelização, também recebendo quem o procurava para curas as mais diversas, tanto em nível orgânico quanto psicoemocional (com o espiritual subjacente a ambos).
"Parece que o José das Neves, acreano de Xapuri, foi o primeiro. O Mestre teve uma amizade muito boa com ele e, se não estou enganado, chegaram até a trabalhar de sócios… O fato é que consta na história como sendo o primeiro e que daí por diante acompanhou sempre o padrinho Irineu [desde aquela época, os que com ele conviveram se referem a mestre Irineu como 'padrinho']; até os dias finais de sua vida terrena ainda tomava daime e ocupou por muito tempo a pasta de Conselheiro, talvez desde a época dos primeiros Estatutos e do Leôncio Presidente; aí, já se deve ter colocado o José das Neves Conselheiro. Tido como primeiro discípulo, acompanhou toda a trajetória e consta também que foi por intermédio dele que Antonio Gomes achegou–se à doutrina".168
Em meu primeiro serviço bailado, mês e meio após meu encontro com o daime e quando nem fardado eu era, tive a marcante vivência interna de estar, como anotei em meu diário na época, "cumprindo rituais que me anunciassem e preparassem como uma alta autoridade 'militar', recém–chegada e prestes a ser empossada com uma missão precisa, cuja chegada estava sendo suportada por (…) 'fardados', exatamente para me apoiarem em meu caminho, misto de escolta de proteção e de suporte".
"Militar" – justo eu, filho de comunistas, graças a Deus!
Por muito tempo temi ter sido só delírio, pela ameaça de emersão de algum núcleo interno meu, sedento de poder pessoal e reconhecimento público, mas eu nada sabia, ainda, das "hostes celestiais".
Aliás, por falar nelas, este não é conceito presente apenas em pressupostos espirituais menos sofisticados. Santo Tomás de Aquino (1224–1273) é claro: "o combate em si mesmo procede da maldade dos demônios [anjos decaídos da Graça], que por inveja se esforçam para impedir o progresso dos homens e por soberba usurpam a semelhança do poder divino, delegando determinados ministros para combater os homens, assim como os anjos servem a Deus em determinadas funções em prol da salvação dos homens"169 e "a guarda dos anjos tem como efeito último a iluminação doutrinal. Todavia, tem muitos outros efeitos (…) como afastar demônios e evitar outros danos, tanto espirituais quanto corporais"170.
O teólogo vai adiante: "a organização dos demônios, vista a partir de Deus, criador da ordem, é sagrada, pois Deus usa os demônios para seus fins"171.
Destacando a expressão "usurpam a semelhança do poder divino", lembro que anos mais tarde mestre Irineu alertaria de forma repetida para o fato de existir uma entidade que se manifestava no astral semelhante a ele em tudo, burlando os irmãos menos atentos ao serviço, razão pela qual todo cuidado era pouco172.
Relata santa Teresa de Ávila: "estando um dia da Santíssima Trindade completamente arrebatada no coro de certo mosteiro, vi uma grande contenda entre demônios e anjos. Não pude entender o que significava aquela visão. Não se passaram quinze dias e entendi quando irrompeu certa desavença entre pessoas de oração e muitas outras que não o eram. Isso causou graves prejuízos à casa, tendo sido uma batalha que muito durou e trouxe farto desassossego"173.
Fernando de La Rocque Couto cita José das Neves: "Foi no dia 26 de maio de 1931 que comecei este trabalho com ele e trabalhamos juntos até o seu falecimento"174. Aos poucos, foram se aproximando Germano Guilherme (que permanecera na Guarda Territorial, chegando a cabo), Antonio Gomes da Silva, Maria Marques Vieira e seu marido, Damião Marques, João Pereira e dona Percília Matos da Silva, preciosa criatura que foi braço–direito de mestre Irineu por quase 40 anos corridos, além de alguns que a história não destacou, como o major Odernes Pereira Maia, José Afrânio, Antonio Roldão, Alípio Mesquita de Oliveira, Francisco Martins, Manoel Belém, Antonio Tordo, João Leão e Joaquim Português (que recebeu o nono hino da Santa Missa daimista, embora haja quem afirme que o hino foi recebido por sua mulher, Maria, já que ele nem tomava daime175).
A Santa Missa é um conjunto de dez hinos cantados (seis de mestre Irineu, dois de Germano Guilherme, um de João Pereira e um de Joaquim Português) e entremeados por Nove Preces rezadas após cada hino, apenas no serviço aos Finados ou por ocasião da passagem de um irmão (daimista ou não) – em geral aos sete dias após a passagem e sempre após as quatro horas da tarde (exceção feita à Santa Missa do dia de Finados, cantada na madrugada do próprio dia, após o serviço bailado de contrição)176.
Dona Percília conheceu mestre Irineu em 1932, com quase nove anos de idade, passando a viver em sua casa após a passagem de seu pai e a ser criada por ele como filha a partir de 1937, aos poucos se preparando para a importante missão espiritual que teria pela frente, embora ainda não o soubesse.
Porque acompanhou, desde os primórdios, o complexo e longo processo que foi o brotamento e a confirmação da doutrina daimista, até chegar ao que hoje conhecemos: "quando eu cheguei, o Mestre tinha apenas três hinos. Mas ele tinha um 'Bendito'… não era hino… era um 'Bendito'… que ele cantava. Ele gostava de cantar esse 'Bendito' quando terminava o serviço; lá pelas certas alturas, cantava assim:
O que será de nós, meu Deus,
o que será de nós sem Vós,
não permitas, oh! meu Jesus,
que nós se afaste de Vós.
O que será de nós, minha Mãe,
o que será de nós sem Vós,
não permitas, oh! meu Jesus,
que nós se aparte de Vós"177.
Com o tempo, ela passou a ser quem mestre Irineu chamava em primeiro em todo serviço de cura e a quem ele mais tarde entregou a delicada tarefa de "passar a limpo" os hinos.
Isto é, além de proceder a correções gramaticais nos hinos recebidos por irmãos analfabetos (já que viria a ser a primeira professora da "Escola O Cruzeiro", criada pelo Mestre em 1961 no "Alto Santo", o qual veremos adiante), dona Percília teve por missão orientar doutrinariamente os "donos" dos hinos (quem os "recebia" da eternidade), separando os hinos que figurariam na doutrina, como balizas, daqueles que eram orientações pessoais ou meras fantasias:
"Como eu tive oportunidade de ver um hino aqui… Porque a pessoa é do Maranhão, não sabe?, vai falar das coisas que tem lá no Maranhão, no hino? 'Que no O Cruzeiro, isso', 'que o Mestre era maranhense, aquilo', mas nunca vi ele falar essas coisas! Então a pessoa resolveu cantar, 'ah, porque lá no Maranhão tem isso, tem aquilo'… Fala até, como são aqueles coqueiros? babaçu, não sabe? Minha nossa, isso é hino!? Uma tralha dessas? Isso é coisa da matéria!'"178.
O recebimento dos hinos é maravilha: às vezes em pleno serviço espiritual, a caminho dele ou em seu fim, às vezes durante a lavagem de roupas ou o trabalho no escritório, às vezes até mesmo, e prosaicamente, tomando banho ou dirigindo o automóvel, a iluminação ocorre e de repente o hino "chega": melodia e letra vêm do aparentemente nada, ocupando a mente e o coração de quem o recebe, gravando–se indelevelmente ali.
De certa forma, quando verdadeiro (pois há quem os "componha", à busca de vaidosa admiração), é como os episódios de psicografia, nos quais o médium recebe e transcreve textos, como trabalhou por décadas o mineiro Francisco Cândido Xavier, para citar o mais famoso médium psicógrafo espírita brasileiro.
Há ocasiões em que a melodia vem em um dia e a letra em outro, em outras dá–se o contrário, em outras, ainda, ambas vêem aos bocadinhos, demorando–se um tempo bastante variável no caminho, em um processo não controlável porque dependente da Graça, se hino verdadeiro, por obra do Espírito Santo.
Uma irmã recebeu a primeira estrofe quando estava no metrô em São Paulo, para vir a receber o hino inteiro meses depois, mirando um irmão tocar violão e cantar o hino para ela, "tão simplezinho, simplezinho, que eu até duvidei ser um hino".
E se há quem os receba no primeiro serviço espiritual do qual participa, há quem tome daime a vida toda e nada receba: sua destinação é outra.
Assim se deu com Leôncio Gomes da Silva. Deixado por mestre Irineu na direção do serviço, nunca recebeu um hino sequer, como é natural, aliás, que isso ocorra: "A cada um é dado o dom de manifestar o Espírito em vista do bem de todos. A este o Espírito dá uma mensagem de sabedoria, a outro, uma de conhecimento, conforme o mesmo Espírito; a um o mesmo Espírito dá a fé, a outro o único Espírito concede dons de cura; a outro, o poder de operar milagres; a outro, o de profetizar; a outro, discernir os espíritos; a outro, ainda, o dom de falar línguas; enfim, a outro, o dom de as interpretar. Mas tudo isso é o único e mesmo Espírito que o realiza, concedendo a cada um diversos dons pessoais, segundo a sua vontade"179.
Como canta um hino:
"Estamos todos trabalhando
perante a este poder,
cada qual que tem um dom
conforme o que merecer"180.
De início, nada havia: roupas rituais ("fardas"), a "coroa" da farda de gala das mulheres (ou diadema, que nunca teve um formato estipulado pelo mestre Irineu), a estrela metálica de seis pontas, passos definidos de baile (marcha, mazurca, valsa ou valseado) ou o uso do maracá181 para acentuar o ritmo dos cânticos e do bailado (tanto as "coroas" quanto o uso de maracás são usuais nas festas religiosas maranhenses).
A bem dizer, nem hinários…
Dona Percília recorda quando alguns poucos irmãos passaram uma noite inteirinha tomando daime e cantando hinos – cinco do Mestre, dois de Germano Guilherme e dois de João Pereira –, cantando hino a hino por três vezes seguidas e voltando a cantar todos eles após ter sido cantado o último, naquele que foi o primeiro serviço espiritual "de hinário" com daime – e bolo, canjica e pamonha à meia–noite183 – de que se tem notícia, na noite da véspera do dia de São João do ano de 1936, na casa de Damião Marques e sua mulher, Maria, "porque ela gostava de comemorar este santo"184.
"Três vezes", aliás, é uma das marcas presentes em toda a revelação da doutrina daimista, apontando a Trindade: três vezes o hino "Linha do Tucum" em serviços espirituais mais densos, os "serviços de mesa" (ou "de cruzes"); três vezes o hino de confissão ("Meu divino Pai do céu"), no hinário "O Cruzeiro Universal"; três serviços seguidos, ou três séries de três, quando o caso é de doença grave ou exorcismo; e três vezes as três orações (Ave Maria, Santa Maria e Pai–nosso), por isso "Nove Preces", na abertura e no fechamento dos serviços.
Aliás, cabe comentar o que na doutrina daimista é chamado "Nove Preces", como a destacar o apuro teológico que aos poucos foi manando, por obra da Graça, do trabalho aparentemente simples de mestre Irineu, homem de nenhuma formação escolar.
O que conhecemos hoje como Ave Maria é, na verdade, a justaposição da saudação do anjo Gabriel "Ave" 185, no momento da anunciação, com o louvor de Isabel, parente de Maria – "Tu és bendita mais do que todas as mulheres; bendito é também o fruto do teu ventre!"186 – e as elocuções finais apostas pela Igreja Católica na Idade Média, em um processo de quase um milênio.
Nas igrejas orientais do Século VI registra–se a veneração da Virgem, como testemunhos arqueológicos o atestam, já com a apropriação dos textos da Escritura. Como exemplo, num pote de barro do Século VII se lê: "Ave, Maria, cheia de graça, o senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, porque vós concebeste o Cristo, o Filho de Deus, o Redentor de nossas almas".
O Papa Urbano IV, por volta de 1300, acrescentou "Jesus" após "o fruto do vosso ventre".
Quanto à segunda parte da prece, no Século XIII orava–se apenas "Santa Maria, rogai por nós" e a partir do Século XIV acrescentou–se "pecadores" e "agora e na hora de nossa morte", com o Concílio de Narbona assumindo a "Ave Maria" em 1551 e o Papa Pio V a fixando em 1568 na forma latina187: "Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum. Benedicta tu in mulieribus, et benedictus fructus ventris tui, Iesus. Sancta Maria, Mater Dei, ora pro nobis peccatoribus, nunc et in hora mortis nostræ. Amen".
Nela, a primeira parte, "Ave Maria, cheia de Graça, O Senhor é convosco, bendita sois Vós entre as mulheres, bendito é o fruto do Vosso ventre, Jesus", estruturada sobre os registros da Escritura, corresponde na doutrina daimista à segunda Prece, ao passo que a parte final, "Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte, amém", aposta pela Igreja Católica, corresponde à terceira Prece.
E o Pai–nosso ("Pater noster, qui es in cælis, sanctificetur nomen tuum. Adveniat regnum tuum, fiat voluntas tua, sicut in cælo et in terra. Panem nostrum cottidianum da nobis hodie. Et dimitte nobis debita nostra, sicut et nos dimittimus debitoribus nostris. Et ne nos inducas in temptationem, sed libera nos a malo"), que discutiremos no capítulo Os "hinos novos", corresponde à primeira Prece. Orados, "três vezes um Pai–nosso, uma Ave Maria e uma Santa Maria"188 compõem as "Nove Preces" (como a abertura de um rosário) e costumam ser seguidas por uma Salve Rainha:
"Salve, Rainha,
Mãe de misericórdia,
Vida, doçura, esperança nossa, salve!
A Vós bradamos, os degredados filhos de Eva,
a Vós suspiramos, gemendo e chorando,
neste vale de lágrimas.
Êia, pois, advogada nossa,
estes Vossos olhos misericordiosos
a nós volvei.
E depois deste desterro mostrai–nos Jesus,
bendito fruto do Vosso ventre.
Oh! Clemente!
Oh! Piedosa!
Oh! Doce e sempre Virgem Maria!
Rogai a Deus por nós,
santíssima Mãe de Deus,
para que sejamos dignos de alcançar
as promessas de nosso Senhor, Jesus Cristo!"
(Deve ser mencionado que a oração latina inicia com "Salve, Regina, Mater misericordiæ", ou "Salve, Rainha, Mãe de misericórdia", e que após a passagem de mestre Irineu passou–se a iniciar a oração com a elocução "Deus Vos salve, Oh! Rainha!" apenas por preferência de uma antiga daimista189. Assim também, a adoção da Prece de Cáritas em centros daimistas, oração psicografada em 25 de dezembro de 1873 em Bordeaux, França, só ocorreu após meados dos anos 70, por sugestão de Sebastião Mota de Melo, já que é costumeiramente adotada em centros espirituais kardecistas e, como decorrência do sincretismo190, em centros de umbanda.)
Após o encerramento do serviço é costume, desde mestre Irineu, persignar–se com a elocução "Pelo sinal da Santa Cruz, livrai–nos Deus, nosso Senhor, dos nossos inimigos", enquanto se faz por três vezes o sinal da cruz: sobre a testa, a boca e o peito191.
Em julho de 1937 mestre Irineu casou–se com Raimunda Marques Feitosa – filha de Maria Franco Marques, uma antiga seguidora sua –, com quem já vivia antes do casamento e esteve até 1955, quando ela se envolveu com outro homem192 e a seguir o deixou, para acompanhar sua mãe ao Rio de Janeiro.
(Tinha havido uma outra companheira, entre sua chegada em Rio Branco e o início da coabitação com dona Raimunda, mas desta mulher, dizem que Francisca e que faleceu, sei apenas que, bem doente, já prestes a fazer a passagem, sugeriu ao mestre Irineu que "casasse com Raimunda, a mocinha contratada para ajudar a cuidar dela, na enfermidade"193).
Com o correr do tempo a forma do serviço espiritual daimista foi desenvolvida e aprimorada, com muitos vaivéns, o que nos traz outro ensinamento: não há ser encarnado que venha "pronto" e liberado de se desenvolver com o passar dos anos, seguidos anos, muitos anos de intenso trabalho, às vezes a vida toda, em meio às possibilidades e limitações da matéria.
Como diz um conhecido meu, a seu jeito um mestre também, "não dá para confiar na tridimensão"!
De Jesus, e de Moisés, Sidharta (o Buda), Maomé e alguns avatares194, deles só sabemos melhor a partir da vida adulta avançada, por volta dos 40 anos de idade – dentro de expectativas de vida bem mais curtas que as atuais –, quando principiam seu ministério e ativo pastoreio.
Assim também se deu com mestre Irineu, que nisso não foi diferente.
Nascido em 15 de dezembro de 1890195, parece que de noite, e primogênito entre seis irmãos, apenas com 41 anos é que iniciou sua missão. Aos poucos, o que era prática de reuniões sem regularidade para tomar daime e ficar em concentração silenciosa (às quartas, sábados ou domingos, embora o preferido por ele fosse as noites das quartas, "noite de cura"196), passou a ser a realização de duas reuniões quinzenais por mês, por "determinação superior".
Nas "concentrações", que figuram entre os mais importantes serviços espirituais da doutrina daimista, todos tomam daime uma única vez e se sentam em silêncio por cerca de hora e meia, em introspecção pessoal.
Como canta um hino de Luiz Mendes do Nascimento,
"Ô, lindo daime,
veja como é,
é maravilha
para todos, tendo fé.
Eu peço ao meu Mestre,
no meu coração,
a santa luz
da Virgem da Conceição.
Te afirma em Deus,
em concentração,
que tu terás
a santa bênção".
Com o tempo se consegue um nível de ensimesmamento raras vezes possível de outro jeito, levando o daimista a defrontar consciente e corajosamente197 medos, fantasias, ressentimentos, desejos, reminiscências, memória pessoal ou transpessoal e dados da realidade espiritual que o envolve e por vezes até o influencia – embora sempre, de alguma forma, o impacte.
"A primeira oração sobrenatural que, a meu ver, senti (chamo de sobrenatural algo que não podemos adquirir com nosso engenho e esforço, por mais que procuremos, embora possamos nos dispor a ele, o que é muito importante) é um 'recolhimento interior' que se sente na alma, dando a impressão que ela tem outros sentidos, como aqui tem os exteriores, e de que parece querer afastar–se das agitações exteriores; e assim algumas vezes o leva consigo, pois lhe dá vontade de fechar os olhos e não ouvir, nem ver, nem entender senão aquilo de que se ocupa, que é poder tratar com Deus a sós"198.
"Cada vez que, pela meditação, o consegue, é mais um ato; e como a repetição dos atos gera o hábito, assim muitos atos dessas notícias amorosas chegam, com a prática, a se tornar tão contínuos que se transformam em hábito para a alma"199.
Cantam os hinos:
"Quem quiser seguir comigo
faça concentração,
implorando ao Pai eterno
e à Virgem da Conceição"200.
e
"Repousei–me e concentrei,
minha conselheira chegou.
Foi dizendo para mim: esta verdade
para todos ela mostrou"201.
Aprendendo a desenvolver a quietude interna que predispõe a alma ao recebimento do ensino divino, para ir além: "após se exercitarem por meio de imagens, formas e meditações convenientes aos principiantes, o Senhor lhes oferece bens mais altos, mais interiores e invisíveis, subtraindo–lhes o gosto e a consolação que encontravam na meditação discursiva. O espírito não gosta mais de saborear aquele manjar; precisa de outro mais delicado e interior, ao mesmo tempo menos sensível, que não consiste em trabalhar com a imaginação e, sim, em deixar a alma na quietação e repouso, o que é mais espiritual"202.
Em tais serviços, antes de ter início a concentração de todos os presentes é lido o "Decreto de serviço", texto curto que mescla orientações práticas sobre o serviço e exortações relativas ao bom comportamento de quem participe do grupo, orientando o serviço e colaborando para a reforma íntima de cada um203(ainda hoje o texto também é lido ao término do serviço, provavelmente como forma de reforçar o aprendizado):
"Este Decreto de serviço tem por finalidade despertar e fortalecer os deveres dos filiados desta casa e dos visitantes que a buscam porque necessitam.
A importância da compreensão
Todos os que tomam daime em serviços espirituais não devem apenas procurar ver belezas e primores mas, acima de tudo, corrigir os próprios defeitos, formando assim o aperfeiçoamento da sua personalidade.
Por isto não deve haver intrigas, ódio ou desentendimentos dentro desta irmandade, por menos importantes que possam parecer. Quando ocorrerem, já que somos todos imperfeitos 204, as desavenças devem ser expostas, entendidas e perdoadas.
Se assim fizerem, poderão seguir nesta linha e dizer: sou irmão.
E ser irmão é tratar todos com respeito e amor em nossa vida cotidiana, dentro da ordem e da sinceridade, evitando os vícios e outros maus costumes que possam abater física ou moralmente a nossa personalidade.
Sempre rogando ao supremo criador por toda a humanidade, que este é o caminho de se formar o alicerce espiritual.
Além disto, devemos tratar da união dentro e fora da irmandade em que estamos, para que Deus nos dê saúde, energia e alegria de viver205, conforme nosso merecimento. E não devemos menosprezar outras doutrinas, seitas ou religiões, pois, dentro do cumprimento da Lei, é nosso dever confraternizar com todos sem distinção de cor, raça ou crença, porque todos são criaturas emanadas de Deus.
Ninguém é obrigado a seguir este caminho e só seguirá nele quem queira alcançar o bom êxito na vida espiritual. Mas todos os que desejarem seguir essa missão devem cumprir fielmente esta instrução: tudo o que eu não quiser para mim não devo desejar para o meu irmão.
Instrução aos senhores pais
Todos os pais e mães de família devem criar dentro de seu próprio lar um centro de paz e harmonia.
Esposo e esposa devem tratar–se com dignidade e respeito, incluindo as pétalas deste amor no mais firme propósito do futuro e da felicidade.
Todos os pais e mães de família devem ser professores exemplares para seus filhos, não tendo comportamentos que possam prejudicar a moral das crianças, ensinando–as a amar a Deus sobre todas as coisas e se dedicando todos os dias no caminho da verdade.
A disciplina é a principal estrutura da ordem, porque não pode haver ordem onde não há disciplina, mas disciplinar é sempre instruir e motivar – e não bater, xingar ou gritar 206 –, desenvolvendo assim os conhecimentos práticos e os ensinamentos básicos da vida humana.
Se assim fizermos, estaremos marchando para o caminho da perfeição e em busca de novas realizações.
Comportamento para iniciar o serviço de concentração
A casa em que estamos é uma escola divina e a instrução que nela recebemos, sempre no caminho do bem, depende unicamente da atenção e do esforço de cada um.
É por isto que se diz que, havendo força de vontade, nada para nós é custoso.
Devemos nos conscientizar de que o daime e os hinos dos nossos hinários estão nos mostrando claramente a luz do poder sagrado do divino Senhor Deus e do caminho da verdade. Então, para aquele que fizer caso da instrução deste professor nada será difícil.
Mas é preciso muita atenção e cada um olhar para si mesmo, não reparando, portanto, para os defeitos de seu semelhante.
Devemos também reconhecer que a escola não precisa do aluno, pois é o aluno quem precisa da escola, assim como também que o Mestre não deve nada aos seus discípulos e que são os discípulos quem deve tudo ao seu mestre.
Nos dias de serviço, então, todos os que vierem a esta casa à procura de recursos físicos, morais ou espirituais devem sempre trazer consigo uma mente sadia, cheia de esperança, implorando ao infinito Espírito do bem e à Virgem soberana Mãe criadora para que sejam concretizados os seus desejos, de acordo com o merecimento de cada um207.
Para iniciar nosso serviço de concentração, depois da distribuição de daime todos se colocarão em seus lugares e em forma, tanto o batalhão feminino quanto o masculino, pois todos têm a mesma obrigação e quem tem obrigação deve desempenhá–la.
O centro é livre mas quem toma conta dá conta e presta contas, pois ninguém vive sem obrigação e quem tem obrigação tem sempre um dever a cumprir.
Para podermos atingir nosso objetivo principal, é necessário desenvolvermos a habilidade do mais profundo silêncio208, não sendo permitido conversar durante a concentração efetuada e só sair do recinto em caso de extrema necessidade.
Durante a concentração devemos dedicar toda a nossa atenção a nós mesmos, com respeito interno e externo às autoridades supremas, a fim de alcançarmos as bênçãos divinas e sermos assistidos pela luz do Supremo, clareando os olhos de nossa mente209 para podermos enxergar a luz da verdade, conforme o nosso merecimento.
Além disto, não devemos nunca comentar o que se passa nas reuniões com quem não compartilhou as mesmas, ainda que seja pessoa de nossa família, pois a discrição e o respeito são fatores fundamentais de crescimento pessoal e espiritual.
Meus irmãos, tomando estes cuidados, obedecendo a esta disciplina e rogando ao Pai eterno e à Virgem Mãe soberana por todos aqueles que estejam precisando, poderemos fazer de cada serviço espiritual um passo firme a mais no caminho da verdade, da justiça e da sabedoria divinas".
Então, se ao início se realizava serviços de concentração sem periodicidade alguma, um dia, anos mais tarde, mestre Irineu estabeleceu, por "determinação da Virgem da Conceição"210, que "a partir de então as sessões devem ser feitas de quinze em quinze dias"211.
Do ponto de vista da dinâmica psíquica, a serviço do plano da salvação, tal determinação foi crucial, por ser preciso um regular e por vezes longo processo de elaboração para melhor compreensão do conhecido nos momentos de expansão de consciência ou de vivência de insights e iluminações: "Paulo, vendo a essência divina num arrebatamento, no dizer de Agostinho, lembrou–se, depois que parou de ver a essência divina, de muitas coisas que havia visto em seu arrebatamento"212.
Ou: "Pedro tentava em vão explicar a si mesmo o que podia significar a visão que acabava de ter"213.
Canta mestre Irineu:
"Tudo, tudo Deus me mostra
para mim reconhecer.
Tudo, tudo é verdade,
e eu não posso esquecer"214.
Pois se o hino 45 do hinário "Jardim de belas flores”, de Edson Araújo da Silva, canta: "mirar é muito bom, mas o melhor é compreender", um hino de Sebastião Mota de Melo conclui: "o saber é muito bom, melhor é se corrigir"215. E isso, compreender e se corrigir, leva tempo.
Após tal determinação, e para facilitar, mestre Irineu fixou os dias 15 e 30 de cada mês, por ser de banal memorização e coincidente com as datas em que boa parte dos moradores em rincões distantes vinham à cidade receber aposentadoria ou pensão como "soldados da borracha" ou cargos do funcionalismo público: "era mais prático e, por isso, assim foi determinado"216.
Em conjunto com o "recebimento" dos hinos, na ordem e no tempo que convinham ao amor de Deus, assim também se deram outras determinações, definindo todos os detalhes da doutrina daimista, tal como passou a ser praticada desde a década de 60.
No começo havia só a farda branca de gala e exclusivamente para os serviços espirituais de bailado nas "Noites Santas" (Santos Reis, São João, Conceição da Imaculada e Natal 217).
E tanto homens quanto mulheres utilizavam as "alegrias" a partir da década de 60, fitas multicoloridas que depois passaram a pender apenas do ombro esquerdo das mulheres – provável herança maranhense do Tambor–de–Mina, do Bumba–meu–boi ou das festas do Divino Espírito Santo, já que cada um de nós traz em si os traços mais marcantes do mundo ambiental e histórico em que foi chamado a viver e com mestre Irineu não foi diferente.
Cabe destaque o fato de, no calendário de bailados instituído por mestre Irineu, não constarem serviços de louvor a outros santos além dos diretamente associados à encarnação do Verbo no mundo. Assim, "na sua constituição final, São Pedro e Santo Antonio, por exemplo, não entram para o conjunto oficial de 'trabalhos de hinário'"218.
"E ele gostava que os hinários bailados não tivessem interrupção para nada, exceto para um intervalo, menos ainda para discursos e preleções, com os hinos vindo um seguindo o outro, não sabe?, sem 'muita distância' entre eles"219.
Com o tempo foram estabelecidos também como "extra–oficiais" os dias da Paixão e dos Finados, bem como "se oficializou" o serviço ao aniversário de mestre Irineu (por escolha exclusiva da irmandade encarnada da época: "Perguntamos se devíamos comemorar seu aniversário e ele disse: 'vocês façam como quiserem'"220).
E bem no final de sua vida, provavelmente para fortalecer de forma pública a quem seria entregue a direção dos serviços após sua passagem, por sua direta orientação passou–se a comemorar em 11 de fevereiro o nascimento de Leôncio Gomes da Silva, "só a quem o mestre Irineu 'deu de presente' autorização para comemorar seu aniversário na sede de serviços"221 com farda branca (afinal, por qual outra razão este seria o único aniversário "oficial", entre todos os principais seguidores, até mesmo os da primeira hora e base doutrinária?).
Após o surgimento das fardas brancas, até a década de 60 os homens aplicavam ao peito uma rosa, assim como as mulheres; a seguir, veio a sigla "CRF", bordada apenas nas fardas azuis femininas, e vieram as estrelas de seis pontas, em vigor até hoje, sempre douradas e não prateadas ou de qualquer outra cor (aliás, ao contrário do que passou a ocorrer após a década de 70, nunca houve "rituais de entrega de estrela", num símile do sacramento de Ordem, ou Ordenação: "o irmão, se estivesse na hora, punha a farda e a estrela e ia bailar, não sabe?"222.
Canta um hino:
"A Virgem Mãe lhe deu o poder
e lhe entregou Vossa bandeira,
mandou ele nos dourar
com Vossas divinas estrelas"224.
Canta outro hino:
"No infinito, no astral,
a Vossa luz faz as estrelas brilhar.
Todas são luzes dos seres divinos
que aqui nos amostra o Poder aonde está.
Esta estrela, vuz dourada que nos guia,
é Jesus Cristo Redentor, Filho da Virgem Maria.
Com seu poder nos dá estes ensinos
para nós aprender com amor e com alegria.
Esta luz prateada que nos brilha,
ela é Divina, é da sempre Virgem Maria,
que ela é Mãe, Senhora de todos ensinos,
manda Vós ensinar a todos Vossos filhos"225.
(Nunca encontrei consenso sobre o que seja "vuz dourada", embora todos digam que o hino veio deste jeito, e nunca ninguém soube me explicar por que em fotos antigas mestre Irineu utiliza uma estrela de cinco pontas, enquanto fardados a seu lado utilizam a rosa e uma estrela de seis pontas.)
Assim também, se ao princípio as estrelas eram portadas de acordo com a "patente" ou grau de desenvolvimento espiritual do irmão – uma, duas, três ou mais estrelas –, logo, logo, mestre Irineu compreenderia que isto servia de referencial público "de nível" e nutria vaidades, restringindo–as a partir daí a uma única, dourada, sempre ao lado direito do peito.
"Os mais velhos contam que a gente conhecia as pessoas por 'divisão': ia de uma estrela até nove. Mas aí começaram umas faltas de compreensão e quem tinha mais estrelas queria 'massacrar' quem tinha menos e, aí, o Mestre extinguiu. Ficou todo mundo igual"226.
"Olhe, anteriormente não era nem essa farda que nós temos hoje, era uma outra farda, era assim quase uma farda de marinheiro; não se portava essa estrela, eram divisas, então aquilo era por, vamos dizer, mérito… Pelo trabalho que a pessoa ia desenvolvendo aqui dentro, pelo esforço que fazia, ia ganhando 'patentes', dadas, claro, não pelo Mestre, era pela Rainha, a Rainha é quem determinava os galões que a pessoa poderia receber. Ele entrava 'em conferência' e voltava com a patente. Então, eram divisas na farda, quase tipo de marinha, tinha aqueles cordões assim, um pequeno casquete branco ou azul, calça azul, camisa branca e as divisas"227.
E as mulheres? "Da mesma forma, embora no começo não com saia. Teve calça comprida e depois passou a saia. O Mestre dizia que 'homem é homem e mulher é mulher', tem que haver uma diferença, dar mais feminilidade à mulher. Mas um dia perguntei a ele: 'Mestre, o senhor não acha que uma mulher com calça comprida está mais segura do que com saia?' Ele disse: 'está, o vento pelo menos não levanta uma calça, se ela dá um pulo, assim, se mantém do mesmo jeito, só que nós – ele disse assim, 'nós', ele usou essa palavra 228 –, nós somos fracos, a mulher com uma calça, ela está com o corpo dela todo 'desenhado'. O senhor toma daime aqui, está aqui do lado, vai ver, vai baixar seu pensamento, aí 'cai'…"229.
Até hoje, no Norte brasileiro e em outras regiões do País, utiliza–se o termo "farda" para designar o uniforme escolar das crianças.
Porque a farda – seja a de gala, branca, ou a de serviço, azul – é necessária para uniformizar a irmandade, aplanando as diferenças entre todos na forma de se apresentar para servir: "o Mestre gostava de tudo uniformizado no salão, não sabe? Sempre dentro das possibilidades de cada um, pois tinha irmão que nem sapato podia comprar, mas era para ficar todos iguais, reduzir a ilusão e não ficar um querendo se mostrar mais do que outro"230.
A farda azul de serviço – para as concentrações, os serviços de cura e os bailados em outras noites – veio apenas no ano imediatamente anterior ao da passagem de mestre Irineu mas só entrou em uso após sua passagem231, razão pela qual o encontro fúnebre em seu velório – para cantar, todos sentados, "O Cruzeiro Universal" – foi feito com farda branca, de gala, e não azul, de serviço, como ele determinara para todos os outros serviços espirituais que não os bailados nas Noites Santas, entre eles a Sexta Santa e Finados, ambos serviços "extra–oficiais" de contrição232.
Por falar em contrição, cabe registrar que o último hino de seu hinário ("Pisei na terra fria"), "porque é de contrição, deve ser cantado sem instrumentos ou baile e apenas no dia dos Santos Reis e na Santa Missa"233.
O passo de baile (marcha) do hino "Amigo velho" veio "cruzado", com os homens indo cumprimentar as mulheres na fila feminina (como em uma quadrilha junina), até que "o Mestre achou muito complicado"234 e decidiu que o bailado deste hino devia ser só lateral, como é até hoje, em se tratando do passo de marcha ou valsa (a mazurca exige um giro de 180o sobre si no passo de baile).
A própria determinação de separação total entre as fileiras masculinas e femininas nos serviços espirituais veio também com o tempo e só se aplicou às fileiras de baile ou de fora da mesa, já que "na mesa de serviços, assim como na espiritualidade, não há homem ou mulher", como ensinam os mais experientes.
Para ilustrar, dona Percília narra que, na noite em que foi à casa de mestre Irineu avisá–lo estar se separando de seu primeiro marido, Raimundo Gomes, irmão de Leôncio Gomes da Silva, pouco antes de 1960, foi indagada pelo Mestre, ao vê–la nervosa: "O que aconteceu, meu filho? O que tu andas fazendo por aqui a esta hora?"
(Esta versão, "meu filho", ao invés de "minha filha", se manteve em duas entrevistas, com oito anos entre uma e outra, como a indicar com segurança não ter sido equívoco ou lacuna de memória.)
Sobre este aspecto, Kardec esclarece: "Os espíritos encarnam como homens ou mulheres porque não têm sexo; como devam progredir em tudo, cada sexo (…) lhes oferece provas e deveres específicos"235.
No tocante à "mesa" composta para apoiar serviços de concentração e de cura, com o tempo mestre Irineu determinou que o número de integrantes deveria ser, sempre, ímpar (três, cinco, sete ou nove homens ou mulheres) ou doze (como é até hoje na Igreja "da Barquinha"), razão pela qual, após sua passagem e pela continuidade dos tempos, passou a ser postada uma cadeira vazia na mesa, à direita da cadeira do dirigente do serviço, com sete cadeiras à mesa mas apenas seis ocupadas por irmãos, ecoando a Escritura: "Procurai antes, entre vós, irmãos, sete homens de boa reputação, repletos do Espírito e de sabedoria, e nós os encarregaremos desta função. Quanto a nós, continuaremos a assegurar a oração e o serviço da Palavra"236.
Mesmo ausente do mundo ele estaria ajudando, da eternidade, o serviço.
Todavia, há versões destoantes sobre o local da cadeira… Há quem narre ter argüido o Mestre: "O Senhor vai me desculpar, mas eu vou lhe perguntar uma coisa. Ele me disse: 'pergunte, meu filho, estou aqui para lhe escutar'. 'Quando o Senhor morrer, quem vai ficar no seu lugar?' Aí ele disse assim: 'meu filho, no meu lugar não vou deixar ninguém, eu vou deixar um dirigente dirigindo vocês e todos vocês, os que merecer, vão me ver sentado na minha cadeira'. Mas ele não disse que a cadeira dele era na mesa. Para nós, que ficamos, nós sabemos onde é a cadeira dele: é lá no canto, onde hoje senta o Luiz Mendes e se sentam os outros, sabe?, a cadeira dele é lá!"237.
Bem verdade que, mesmo sem cadeira, e até sem mesa ou sede de serviços, o Mestre está sempre presente – razão pela qual há quem diga que devem se postar sete ou nove irmãos na mesa de serviço, deixando a cadeira vazia perto –, mas esbarramos, aqui, uma vez mais, na importância do simbólico no ritual.
Quando mestre Irineu estava no mundo, os serviços de cura eram feitos em silêncio piedoso – "quando oramos, não é preciso a locução, isto é, as palavras sonantes; a não ser ocasionalmente, como fazem os sacerdotes a fim de exprimirem o seu pensamento, não para que os ouça Deus mas os homens e, assim, estes, graças à rememoração, se elevem para Deus em certa conformidade de pensamentos"238 –, com a "mesa de cura" rogando contrita pela saúde do irmão, já que apenas a Graça procede à cura, se for do merecimento de quem sofre o corretivo: por isso, um hino de Vera Fróes canta que "as doenças que aparecer é disciplina para quem faz por merecer".
Contam que, uma vez, Francisco Grangeiro Filho, que se aproximou do mestre Irineu em 1951 e foi um dos antigos "feitores" (preparadores) de daime, estava encarregado de dirigir um serviço de cura para uma das filhas de sua companheira; ao sair com uma garrafa de daime sob o braço, perguntou ao mestre Irineu se ao meio do serviço poderiam cantar uns hinos. Dedo em riste, foi advertido: "'seu' Francisco, não estou dizendo para 'abrir um hinário': é serviço de cura, tudo em silêncio e concentração!"239.
A interdição a bebidas alcoólicas também veio com o tempo, assim como a proibição ao uso de roupas e acessórios (toalhas, vasos de flores etc.) pretos ou vermelhos no espaço de serviço, por "uma questão de linha espiritual, como a Rainha ordenou"240, ensinava ele. "Preto e vermelho é juventude na cabeça, não é?"241.
(Por falar em "juventude na cabeça", mestre Irineu desaconselhava a realização de serviços espirituais com daime durante o carnaval, da quinta anterior à Quarta–feira de Cinzas, "pois o astral está muito 'carregado', não sabe?"242.)
No tocante à bebida, e tendo sido sempre dançarino e "festeiro" – "ele sempre foi caprichoso, gostava de andar arrumado, desde novinho"243 –, o Mestre apoiava a realização de festas caseiras com daime – quando se dançava ao som de música comum, como numa festa qualquer, mas também cantando–se hinos –, nas quais não faltava cerveja e até mesmo cachaça.
"Quando o Mestre fazia as festas de dança na casa dele, o 'forró com daime', era com muito respeito. Tinha dança de par, agarrada, mas tomando daime era no respeito"244.
Conta dona Percília que até o hino "Silencioso", o 72, era assim, mas neste hino mestre Irineu pôde compreender ("sendo repreendido pela Rainha", segundo ela) a necessidade de total interdição à bebida alcoólica, dada a quantidade de males que acarreta e a relação dinâmica que instala com seres espirituais menos desenvolvidos ou associados a comportamentos destrutivos, da pessoa ou de outrem.
Como exemplo bíblico, ao anunciar à mãe de Sansão a destinação de seu filho, o anjo foi claro: "Doravante, abstém–te de beber vinho ou bebida alcoólica, não comas nada de impuro, porque vais conceber e dar à luz um filho. A navalha não passará sobre sua cabeça, porque esse menino será consagrado a Deus desde o seio materno"245.
A este respeito, uma vez questionei frontalmente um irmão da casa de oração que eu dirigia, que nos procurara com a dor explícita do alcoolismo:
– O senhor quer mesmo parar de beber? Se quiser, entro nesta luta consigo; mas, se não quiser, ninguém pode fazer nada…
Após tormentosa reflexão, veio a resposta de amargura:
– Olhe, professor, eu não quero não! Vou ficar com muita saudade de todos eles…
Ele se referia aos seres que o rodeavam quando alcoolizado, nutrindo–se do estado anímico produzido pelo álcool e induzindo–o a beber mais e mais e mais ainda, para manter–se no estado necessário a eles – mesmo vindo a falecer algo após, com nem 50 anos, envolto na nuvem de seres que, feito loucas mariposas, tanto buscaram a luz que ele carregava que a findaram apagando…
Aliás, em meu entender, quando kardecistas dizem haver espíritos que "bebem", "fumam" ou "se drogam" por intermédio dos encarnados, e por isso "os induzem" a isso, estão se referindo de modo popular ao fato de tais seres desencarnados ou encantados induzirem pessoas (com cujos espíritos se identificam) ao consumo de álcool ou drogas, à busca de se nutrir das emanações mentais de estados morais mais desequilibrados, numa sutil e complexa passagem da dinâmica corporal e psíquica ao plano espiritual do usuário, através de seu perispírito – já que "o perispírito é o laço que une o Espírito à matéria do corpo" 246 e "as sensações agradáveis, como as desagradáveis, são transmitidas ao espírito pelo perispírito"247.
Isto se dá igual, em via inversa, com os usuários do álcool ou da maconha terminando inadvertidamente por "atrair" seres desencarnados ou encantados, do espiritual para o corpo–mente, pelo perispírito, donde o intenso cuidado quando de seu uso cotidiano e a absoluta interdição necessária quando de serviços espirituais com daime.
Com base nesta mesma dinâmica já se ensinou que "há pensamentos que são de um ser" e eu pude aprender, no correr dos anos, que vitalizamos seres com nossos pensamentos, donde a necessidade de cuidado com o palavrear248 e o incessante cultivo das virtudes, em contraposição às atitudes internas mais corriqueiras de raiva, inveja, medo, cobiça ou rancor.
Mestre Irineu "sempre falava que onde houvesse dois ou três homens conversando, devíamos falar palavras bonitas e idéias boas, já que a gente não sabia quais eram as entidades que estavam 'aproximadas' da gente; nós estamos aqui conversando, ninguém sabe quem está bem juntinho da gente – até ele pode estar, não é?" 249.
Assim, vai–se compreendendo por quais razões os serviços espirituais, entre eles os daimistas, ajudam vigorosamente a pessoa a se livrar de vícios como álcool, drogas, tabagismo, jogo e outros.